Hugo Albuquerque, via O Descurvo e lido em Outra Palavras.
Com a tragédia ainda em curso e a quantidade colossal de sofismas e boatos propositalmente espalhados acerca do Pinheirinho, me dei ao trabalho de selecionar as dez piores mentiras – no sentido de superstição consciente e oportunamente utilizadas pelo poder – que estão a pairar por aí sobre o tema. Vamos lá:
1. “Não houve violações, a reintegração de posse foi pacífica.”
Eis a pior e mais primária de todas. Vídeos aos montes, fotos aos milhares, além de relatos emocionados de testemunhas oculares (como o nosso Tsavkko) e de moradores (dados, inclusive, para a imprensa internacional) contradizem isso. A polícia não veio para brincar, com sua tropa de choque, suas balas de borracha e sua sede por violência. Atacaram uma comunidade formada por famílias – seus velhos, suas crianças, pessoas com necessidades especiais – e quem ficou no meio do caminho apanhou. Sobre eventuais distorções de nossa imprensa,convido à leitura do que pensa sobre isso o Guardian, um dos principais jornais do mundo.
2. “A culpa é dos moradores, por serem invasores e/ou por não terem negociado.”
É a tese do varão da república (do café com leite) Elio Gaspari, devidamente rebatida pelo nosso João Telésforo. Acrescentamos ainda que o Brasil possui 22 milhões de vítimas do chamado “déficit habitacional” – o eufemismo contábil que expressa a quantidade daqueles que foram largados para morrer ao relento –, o Brasil possui uma Constituição que fala em função social da propriedade privada e em dignidade da pessoa humana, o Brasil possui uma jurisprudência que não aceita a inércia da administração pública como desculpa para não realização de políticas públicas. Outra, não estar nem aí para um contingente de milhares de pessoas – só no caso do Pinheirinho – é uma decisão política sua, portanto, assuma o risco dela, mas esperar que essa gente simplesmente tenha de sentar e esperar a morte chegar, é pedir de mais – ou mesmo aceitar um xeque qualquer e enfie o rabo entre as pernas do lugar onde ela estão estabelecidos, só para, no fim das contas, realizar o fetiche dos credores da massa falida de um megaespeculador.
3. “Foi um processo duro, mas cumpriu-se a letra da lei.”
Nem isso. Na manhã de domingo, dia 22, quando ocorreu a invasão, havia um conflito de competência entre a Justiça Estadual e a Justiça Federal, portanto não havia ordem judicial que autorizasse realmente qualquer reintegração de posse. Mesmo se houvesse, uma ordem judicial não equivale a uma carta branca da polícia para fazer nada, tampouco ignorar os direitos ou as garantias daqueles cidadãos asseguradas pelas Constituição.
4. “Os moradores estão sendo atendidos devidamente.”
Os moradores do Pinheirinho, depois de perder suas casas, estão amontoados em igrejas, ginásios ou quetais. Eles estão ao relento e identificados com uma pulseira azul – por que numa estrela azul logo de uma vez?
5. “Os policiais só cumpriram ordens.”
Opa, tudo bem que militares obedecem ordens, mas isso não significa que, numa democracia, um oficial deva acatar irresponsavelmente uma ordem qualquer eexecutá-la da maneira que bem entende – com suscitou a secretária de Justiça de São Paulo Eloisa Arruda –, do contrário, lhes seria autorizado atentar contra a ordem (“democrática”), o que seria uma hipótese absurda. É evidente que os maiores responsáveis por essa hecatombe são os senhores Geraldo Alckmin e Eduardo Cury – respectivamente governador do estado e prefeito municipal de São José dos Campos –, mas os oficiais que lideraram a missão tem sua parcela de responsabilidade nessa história sim.
6. “O Pinheirinho é uma espécie de Cracolândia.”
“Só se for no quesito da especulação imobiliária sobrepondo-se ao direito e à dignidade das classes pobres” como diria meu amigo joseense Rodrigo dos Reis. De resto, essa analogia – como foi utilizada pela Rede Globo – só duplica a perversão verificada no apoio à política de “dor e sofrimento”, aplicada na região do centro de São Paulo chamada “Cracolândia” – um grave problema de saúde pública e de moradia, tratado à base de cacetete.
7. “O governo federal é culpado por ter politizado a situação.”
Como testemunhamos na nota do PSDB para “responder” ao governo federal. Bom, nem vou perguntar como alguém poderia ter politizado uma situação que é política por natureza, mas como seria possível despolitizá-la. Ainda, é curioso como se responda ao quase silêncio do governo federal culpando-o por uma ação violenta que foi executada por dois governos seus, o estadual de São Paulo e o municipal de São José dos Campos. De novo, chuto o balde aqui: faça um, dois, um milhão de pinheirinhos, mas pelo menos assuma o que fez e não se ponha como vítima, as vítimas são os desabrigados.
8. “Os moradores do Pinheirinho são envolvidos com movimentos sociais radicais.”
Membros do PSDB, como o pré-candidato paulistano Andrea Matarazzo,pensam o mesmo do correligionário Geraldo Alckmin, nem por isso alguém razoável defende que o governador seja arrancado à força do que quer que seja. No mais, o governador Alckmin ou os próceres da massa falida do Nahas na imprensa, deviam saber que vivemos numa democracia e as pessoas têm liberdade para se filiar ao grupo pacífico que bem entendem – nem na hipótese absurda de todos os moradores do Pinheirinho terem relação com o PSTU (que é como dizer que todos os moradores do bairro de Alckmin têm ligação com, por exemplo, a Opus Dei), é fato que aquele partido jamais usou de força ou conluios no judiciário para desalojar um bairro inteiro, logo, quem é radical mesmo?
9. “O governo federal não podia ter feito, nem pode fazer, nada.”
Podia sim, tanto que estava negociando uma saída pacífica, até que veio a invasão no domingo, dia 22, uma boa dose de paralisia, uma comemoração de 25 de março com tucanos de alta plumagem e uma condenação vazia no recente Fórum Social Temático. Dizer que o Pinheirinho é barbárie, até eu digo, presidenta, agora mandar hospitais de campanha do exército fornecer ajuda humanitária aos milhares de desabrigados, nem todo mundo pode – e mesmo vale para a construção de moradias dignas para eles no curto prazo. Importante: não estou nivelando tucanos a petistas, esse caso deixa claro que os primeiros não têm coragem de assumir o que fazem, enquanto os segundos não têm coragem de fazer aquilo que assumem – são papéis inteiramente diferentes.
10. “O Pinheirinho é uma catástrofe, estamos todos derrotados, não há nada o que fazer contra essa marcha invencível.”
Toda marcha desse tipo, em seu interior, admite uma Leningrado – e eu não estou chamando tucanos de fascistas em um sentido histórico não, afinal, aqueles tinham coragem moral de assumir o que faziam, isso foi só uma metáfora que guinadas reacionárias, por sua própria natureza, trazem consigo a possibilidade de sua derrota. No demais, não existe espaço para choradeiracomo colocou com precisão o Bruno Cava pelo papel que o Pinheirinho está cumprindo. Digo mais, repetindo o que já digo aqui o tempo todo: a favela é o locus definitivo de resistência daqueles que foram largados para morrer ao relento, é processo de luta, portanto, sua própria existência – e sua reexistência – é positividade pura. O antropofágico Pinheirinho, mais ainda. Derrota é a resignação, é sentar-se e aceitar morrer, nada disso aconteceu.
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Marcos Imperial