João Ubaldo Ribeiro escreveu a obra "Viva
o Povo Brasileiro”. Aliás, um trabalho de mestre: releitura fictícia da
história do Brasil a partir da cultura negra. Neste momento de euforia por
parte das autoridades governamentais e da publicidade, poderíamos parafrasear o
escritor com a saudação de "Viva a classe média brasileira!”. Segundo os
dados, já ultrapassa a casa dos 100 milhões de cidadãos!
Sorrateiramente,
porém, levanta-se uma pergunta incômoda e inquieta: qual o critério para medir
a passagem da pobreza à classe média? Os beneficiados das políticas
compensatórias, por exemplo, podem ser chamados de nova classe média? Classe
média sujeita à ajuda permanente do Estado ou classe média capaz de caminhar
com as próprias pernas? A pergunta pode ser feita de outra forma: onde está a
tão alardeada classe média?
Grande parte
desta, ao que parece, continua morando nas periferias das grandes e médias
cidades, até mesmo em favelas e cortiços. Tem esgoto a céu aberto e nem sempre
conta com água encanada; desloca-se como "sardinha em lata” no transporte
coletivo, ou perde horas diárias no trânsito caótico. Vive sob o signo do medo
e da violência, sem a proteção do Estado e muitas vezes conforme os ventos
incertos do crime organizado. Dificilmente consegue matricular os filhos em
escolas particulares e tem de contentar-se com o ensino público de qualidade
nem sempre confiável... A isso chamamos de classe média!
Mas essa nova
fatia da população brasileira pode consumir! Aí está um dado que as autoridades
e o mercado podem comemorar com grande euforia. Viva, pois, o consumo da classe
média brasileira. Agora ela pode comprar carro, TV de não sei quantas
polegadas, móveis, eletrodomésticos, e assim por diante. No entanto, aqui se
erguem novamente uma série de dúvidas. Se o critério para vencer a fronteira
entre uma classe e outra permanece o consumo individual e familiar, onde estão
os investimentos do Estado em termos de infraestrutura?
A única política
pública que vem se destacando por parte dos governos federal, estadual e
municipal parece ser o incentivo ao consumo, através de um marketing apelativo,
estridente e por vezes agressivo, para não dizer irresponsável. Disso resultam
sinais preocupantes de uso e abuso de cartões de crédito, crescimento dos
percentuais de inadimplência, devolução de produtos impagáveis, nome sujo na
praça... Enfim, dívidas sobre dívidas!
No fundo, uma
robusta classe média requer um padrão de investimento público igualmente
robusto. Condições de vida e trabalho sadias e duradouras: malha viária e
ferroviária para o transporte público urbano e à distância; ensino fundamental
de qualidade e gratuito, com perseverança dos alunos; sistema de saúde sem os
acidentes quase diários de falta de atendimento, filas, demora, e erro médico;
segurança sem os efeitos colaterais da truculência, tortura e extermínio de
jovens e adolescentes; reforma agrária e política agrária no campo, com apoio
ao pequeno produtor e à agricultura familiar; rede integrada de portos e
aeroportos...
Não é isto o que
se vê na sociedade brasileira. Há muito que fazer em termos de políticas
públicas efetivas, voltadas para essa mesma classe média, que ainda amarga uma
situação endêmica de carência e precariedade. Receber ajuda do Estado para o
consumo é algo que evidentemente amplia os direitos do cidadão. Mas como
fazê-lo tornar-se protagonista de sua própria trajetória de existência? Convém
não esquecer que o pão da dignidade humana vem do suor do rosto, ao passo que
"o pão da esmola vem regado pelas lágrimas da vergonha”, como costuma
dizer, ainda em décadas passadas, o jornalista Mauro de Santayana.
O consumo, em
princípio não é bom nem mau. Todo cidadão tem suas necessidades e o direito aos
bens do progresso. Mas, se e quando desacompanhado de uma infraestrutura de
formação (em nível pessoal) e um horizonte de oportunidades (em nível social),
o mesmo consumo pode tornar-se freneticamente febril, impulsivo, doentio. O
estímulo às compras pressupõe uma base sólida de serviços públicos. Para isso
servem os impostos cujo montante, no Brasil, nada deixa a desejar. O que deixa
a desejar é o uso correto de tamanha carga tributária. O termo carga, neste
caso, nada tem de metafórico e exige um retorno por parte dos governos. Pe. Alfredo J. Gonçalves Assessor das Pastorais Sociais.
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