"A falta de originalidade e o amálgama geral do prazer pelo grotesco permeiam a imprensa brasileira. Quem em sã consciência acredita que mostrar os corpos de centenas de vítimas de uma tragédia é, de fato, fazer jornalismo? Quem acredita que assediar parentes de vítimas em seu momento de dor é fazer jornalismo investigativo? O jornalismo brasileiro despe-se de humanidade seja para noticiar chacinas contra jovens negros das periferias de São Paulo, seja para 'denunciar' massacres contra populações indígenas ou sem terras, ou para noticiar e cobrir tragédias de grandes proporções como o incêndio na boate Kiss, em Santa Maria (RS), que causou a morte de mais de 230 jovens."
TRAGÉDIA EM SANTA MARIA
Jornalismo ou a arte do grotesco?
Raphael Tsavkko Garcia*
O que há em comum entre tragédias como o
deslizamento no morro do Bumba, o massacre na escola em Realengo e o incêndio
em Santa Maria? A grotesca cobertura midiática. Sensacionalista, sedenta por
sangue, louca pelo melodrama, desesperada pelo furo que normalmente consiste em
imagens degradantes, cenas de humilhação, desespero e a miséria humana.
O jornalismo de verdade costuma ficar em segundo
lugar. Isto quando sequer transparece nas páginas que oscilam entre pingar
sangue ou verter torrentes de lágrimas colhidas a dedo para criar um quadro
melodramático desnecessário e vergonhoso. A mídia busca respostas fáceis e
quando não as encontra repete a história até ser possível encontrar uma brecha
para fabricar suas próprias verdades. Não importa se a tragédia está
acontecendo ou se é o aniversário dela – de 1, 10 ou mesmo 100 anos: o
relevante é apenas espremer todo o sofrimento que puder.
Imagens de corpos carbonizados ou machucados,
closes vergonhosos de pessoas sentindo a imensa dor da perda, vídeos com o momento
exato de uma execução, a insistência nas perguntas-clichê nos momentos de maior
dor de familiares ou mesmo vítimas: “Como você está se sentindo?”, “O que você
pensa disso ou daquilo?”, “Qual a sensação?”
Direitos humanos
Sensação, sentimentos ou ideias que, infelizmente,
a mídia não tem. A falta de originalidade e o amálgama geral do prazer pelo
grotesco permeiam a imprensa brasileira. Quem em sã consciência acredita que
mostrar os corpos de centenas de vítimas de uma tragédia é, de fato, fazer jornalismo?
Quem acredita que assediar parentes de vítimas em seu momento de dor é fazer
jornalismo investigativo? O jornalismo brasileiro despe-se de humanidade seja
para noticiar chacinas contra jovens negros das periferias de São Paulo, seja
para “denunciar” massacres contra populações indígenas ou sem terras, ou para
noticiar e cobrir tragédias de grandes proporções como o incêndio na boate
Kiss, em Santa Maria (RS), que causou a morte de mais de 230 jovens.
Em um primeiro momento apontaram os dedos midiáticos
para os seguranças. Depois, para a “fatalidade” do ocorrido. Para a banda que
usou material pirotécnico e começou o incêndio. Depois para teorias mil,
comparações e para falhas na legislação, na fiscalização... Mas e os donos do
local, estabelecimento que funcionava com permissão judicial provisória, sem
estrutura alguma para garantir a segurança de milhares de frequentadores? E o
prefeito da cidade, reeleito, responsável direto por fiscais e pela aplicação
das leis no município? E o poder público que deveria zelar pela segurança dos
cidadãos?
Mas não. Respostas fáceis são melhores. Apontar os
dedos para os mortos, para o tempo, o espaço, o acaso, é muito mais fácil do
que bater de frente e fazer jornalismo de verdade. O tom é sempre o mesmo. Sensacionalismo
puro. A completa desumanização de familiares e vítimas que são mero produto
para o entretenimento da massa. A cobertura de TVs e jornais em nada difere dos
policialescos de péssima qualidade que diariamente demonstram que direitos
humanos é algo a ser desrespeitado, que só serve para “bandido” e que bom mesmo
é ver o sangue correr.
Show da vida
E o sangue corre. Sempre corre.
Em algum momento um jornalista questiona
timidamente por que vemos tanta desgraça, por que há tanta violência? Mas em
momento algum questiona a si e a seus colegas de profissão que, por vontade
própria ou pressão dos diretores, vendem a morte, a dor e o sofrimento como
itens típicos de mercado de esquina. Não é apenas a violência que aumenta, mas
o espaço que ganha a cada dia na TV, nos jornais, nas revistas...
No caso de Santa Maria, convidam especialistas para
falar de legislação, de tragédias, de fatos semelhantes... Tudo intercalado com
rostos emocionados, vozes que tremem levemente frente às câmeras, um olhar de
indignação semelhante ao usado em tragédias anteriores e muitas imagens
chocantes, de desespero, de desalento.
É o show da vida, o show da realidade formatada
para a audiência acostumada a reality shows e big brothers que não escondem
nada, exceto a verdade.
* Raphael Tsavkko Garcia é blogueiro e jornalista,
formado em Relações Internacionais pela PUC-SP e mestre em Comunicação. Observatório da Imprensa. Postado por Marcos Imperial.
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