Ao chegar a Brasília há sete anos,
Josinaldo da Silva tinha apenas R$ 900 de mesada da Funai e um currículo
escolar tão pobre quanto o bolso. Por FLÁVIA TAVARES.
CAPÍTULO 1
DE COCAR NO DIA DA FORMATURA
Josinaldo
da Silva esperava com ansiedade sua vez de receber o pedaço de papel que
coroaria sete anos de sua vida. Mal enxergava a família, que, após deixar
Petrolina, em Pernambuco, e voar 1.550 quilômetros, acomodara-se
discretamente no fundo do auditório do Quartel-General do Exército, em Brasília. Seus olhos divisavam apenas quem, nas
primeiras fileiras, lhe entregaria o canudo em instantes. Quando o mestre de
cerimônias pronunciou seu nome, Josinaldo viu o pajé Álvaro Tukano soerguer-se,
orgulhoso. Carregava nas mãos um enorme cocar de penas de gavião, similar ao
que ostentava na própria cabeça. Aproximou-se de Josinaldo, tirou-lhe o capelo,
substituiu-o pelo cocar, pôs as mãos no ombro do pupilo e – súbito – encostou
sua testa na dele. Josinaldo ficou sem reação: não esperava esse gesto. Nem o
que aconteceria depois. A plateia e os outros 39 formandos ficaram de pé para
aplaudir o primeiro índio formado em medicina pela Universidade de Brasília
(UnB).
A
noite de 1º de fevereiro deste ano encerrou a improvável jornada que começara em
18 de abril de 2006, quando Josinaldo, da etnia aticum, chegara a Brasília.
Chegara graças a seus esforços e a uma parceria entre a UnB e a Funai, pela qual ele obtivera sua vaga na UnB.
Josinaldo vivia, com os cerca de 5 mil índios aticuns, na Serra do Umã, sertão
de Pernambuco. Ao chegar a Brasília, tinha apenas R$ 900 de mesada da Funai e
um currículo escolar tão pobre quanto o bolso. Mal conseguira um teto, já tinha
de vestir o jaleco branco. Começara as aulas com a disciplina mais temida pelos
novatos: anatomia. “Levaram a gente para uma sala com cadáveres, foi a primeira
vez que vi, um choque. Entrar num ambiente cheio de corpos é para saber se você
quer mesmo estar ali”, diz.
DIPLOMADO Josinaldo
da Silva no Posto de Saúde de Santa Maria. “Quando soube que passei no vestibular,
demorei a acreditar” (Foto: Celso Junior/ÉPOCA).
Josinaldo se sentia estrangeiro em Brasília. Pela
primeira vez, sentiu o que é ser diferente dos outros. Não conseguia fazer
amizades. A solidão lhe doía. Nos primeiros meses de aula, tinha apenas um
amigo: Jânio, da etnia baré, do Amazonas, também estudante de medicina. Os dois
dividiam um quartinho e as angústias. A família de Jânio, porém, estava com
muitos problemas – a mãe doente, o pai alcoólatra. A pressão foi grande para
que ele voltasse à aldeia. Jânio voltou. Um mês depois, matou-se. “Foi como
perder um irmão. A gente conviveu pouco tempo, mas intensamente”, diz
Josinaldo.
No
primeiro semestre, Josinaldo foi reprovado em duas matérias. E depois em mais
uma. Quando pensou em desistir das aulas de imunologia, difíceis demais, foi
motivado a continuar pelos companheiros. “Fiz poucos amigos na universidade,
mas os que fiz foram de verdade”, diz. Foram eles que bancaram os dois
primeiros estetoscópios de Josinaldo – os equipamentos custavam R$ 150 cada um,
uma pequena fortuna para ele. E o ajudavam quando o dinheiro da Funai
atrasava. “A hombridade dele sempre me impressionou. Ele é reservado, mas fala
de suas raízes com orgulho e nunca deixa de cumprir um compromisso”, diz Felipe
Machado, um dos amigos da faculdade.
Josinaldo
é um dos cinco indígenas formados até aqui na UnB pela parceria firmada em 2004
com a Funai. Hoje, há 63 alunos indígenas na universidade. São estudantes de 31
etnias diferentes, distribuídos em cursos como administração, sociologia e
agronomia. O convênio não é exatamente uma cota, como no caso dos alunos
negros. Desde 2006, a UnB cria dez vagas por semestre exclusivamente para os
índios. Os alunos que entram pela cota de negros ocupam 20% das vagas já
existentes nos cursos. No quinto semestre, a solidão dos tempos de calouro deu
lugar ao reconhecimento orgulhoso da identidade. Josinaldo e os demais índios
da UnB dançavam pelos corredores da universidade, em manifestações “contra o
preconceito”.
CAPÍTULO 2
DE COCAR NO RITUAL DA ALDEIA
A
dança que Josinaldo fazia no campus, sem camisa, de calça jeans e
cocar, andando em círculos e batendo o pé no chão, chama-se toré. É a mesma que
praticava quando era criança. Josinaldo adorava participar do ritual que
acontecia a cada 15 dias. Era o escape de sua rotina de roça. Terceiro de seis
irmãos, ele mal conheceu o pai, que os abandonou e, anos mais tarde, foi
assassinado numa briga. Com 6 anos, já ajudava a mãe a capinar as plantações de
mandioca, milho, abóbora e feijão. Nos dois meses do ano em que chovia, o
trabalho era diário. A família largava a casinha de pau a pique da aldeia sem
saneamento para subir a serra. Lá, Josinaldo se instalava com a mãe e os irmãos
numa palhoça, dormindo no chão. Também colhia algodão nas fazendas da região.
Estudar não era prioridade. Mas Josinaldo queria tanto aprender que dava um
jeito de recuperar as aulas perdidas na única escola da aldeia, que só chegava
à 4ª série. Quando terminou, em 1989, queria continuar estudando. Refez o ano
três vezes. “Virei pós-doutor em 4ª série”, diz Josinaldo, rindo.
Em
1995, surgiu a oportunidade: construiu-se uma escola de 5ª a 8ª série no
quilombo Conceição das Crioulas, vizinho ao povoado de Mulungu. A história das
seis negras libertas que fundaram o quilombo, no comecinho do século XIX, se
mescla com a dos aticuns – e a herança está no rosto mestiço de Josinaldo. Ele
percorria todo dia, de jumento ou bicicleta, rodeado de outras crianças, os 6
quilômetros até o quilombo. Para fazer o ensino médio, o caminho era mais
longo, de ônibus: 48 quilômetros até a cidade de Salgueiro. Depois de estudar e
ainda ajudar a mãe na roça, Josinaldo se reunia com os familiares. A aldeia não
tinha luz. Eles acendiam uma fogueira e ouviam os mais velhos contar histórias.
Já
crescido, Josinaldo começou a trabalhar como agente de saúde, cuidando de sua
aldeia. “A gente sabia que era ruim, mas, indo de casa em casa, é que vi”, diz.
O chão batido dos casebres sem esgoto, sem comida, inundados durante os meses
de chuva... Josinaldo conta que visitou uma mãe que amamentava um bebê e notou
que as costelinhas do menino estavam à mostra, marcadas na pele fina. “Aquilo
foi o que mais me doeu. Foi quando comecei a sonhar em ser médico. Era a utopia
da utopia.”
Em
2005, Josinaldo soube do convênio entre a Funai e a UnB. Fez o vestibular no
ano seguinte.“O pessoal da Funai ligou para dizer que eu havia passado. Achei
que era trote. Demorei a acreditar.” Com cinco mudas de roupa, meia dúzia de
livros e o aval de seu povo, que recomendou seu nome para a Funai, Josinaldo
partiu para Brasília. Foram sete anos até o jaleco branco com o bordado no
bolso: “Dr. Josinaldo Silva”.
CAPÍTULO 3
DE JALECO BRANCO NO POSTO DE SAÚDE
Numa
tarde escaldante de março, a salinha do Posto de Saúde do distrito de Santa
Maria, em Flores de Goiás, a 210 quilômetros de Brasília, está cheia. Dona
Orica, de 59 anos, está ansiosa por ser atendida, depois de meses em que o
posto ficou sem médico, pelo doutor novo que chegou na semana anterior.
Josinaldo sai da sala com uma prancheta nas mãos e chama dona Orica. Depois
outro, e outro... Atende sem parar, das 7 às 16 horas. No fim do expediente,
dorme num quartinho minúsculo no fundo do próprio posto. Josinaldo está lá por
causa do Provab, programa do governo federal que oferece R$ 8 mil de salário a
médicos recém-formados que topem trabalhar nesses rincões sem estrutura. Ele
ficará em Santa Maria por um ano. Depois, seguirá para Planaltina, na periferia
de Brasília, para fazer a residência de dois anos em medicina de família, área
que escolheu.
Josinaldo
se sente na obrigação de voltar daqui a três anos para sua aldeia, para
retribuir a confiança que seu povo lhe deu. O convênio da Funai com a UnB não
prevê oficialmente a contrapartida da volta – ela é firmada entre o índio e as
lideranças de suas aldeias. A aldeia Mulungu de hoje é bem diferente da aldeia
Mulungu da infância de Josinaldo. A luz chegou em 2001, todo mundo tem
televisão e celular, e as famílias agora constroem fossas sépticas com a ajuda
do governo. Josinaldo também mudou. Comprou um carro e arrumou uma namorada, estudante
de psicologia. Sua família não vive mais lá. Partiram para ganhar a vida em
outras cidades de Pernambuco e em São Paulo. “Saí de lá com um propósito. Teve
um povo que disse para eu vir. Quero voltar, me sinto nessa dívida”, diz
Josinaldo. “Espero que daqui a três anos eu continue pensando isso.” Via http://revistaepoca.globo.com Postado por
Marcos Imperial.
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