Cenas da tentativa de invasão ao Itamarati. Fonte: Brasil 274
“Quem
acordou não foi o Gigante, mas o monstro autoritário e violento. Fiquemos em
casa hoje com o pequeno Hitler que vive em cada um de nós.”
Os comentários abaixo são rebus sic stantibus,
isto é, refletem o que estou captando agora. São conclusões parciais. Espero
estar errado. Torço por isso.
Participei do momento dos Caras-Pintadas, no início
dos anos 90. Tínhamos uma bandeira concreta: havia sérias e fundadas acusações
contra Collor.
Havia denúncia feita pelo próprio irmão, dando conta
de atos de corrupção pessoalmente praticados pelo Presidente da República. Mas
não havia depredações e agressões nas nossas manifestações. Pintávamos e
celebrávamos a democracia exercendo nossa cidadania. Os partidos estavam
presentes porque fazem parte do jogo democrático. Os trâmites constitucionais
foram seguidos e ele perdeu o cargo.
Esse movimento é diferente. É confuso, caótico As
bandeiras iniciais foram se dissolvendo em um caldo difuso e contraditório.
Fala-se na diminuição da carga tributária e, ao mesmo tempo, no aumento dos
investimentos sociais (a conta não vai fechar). No fim da corrupção, mas, ao
mesmo tempo, na deposição sumária de representantes eleitos, o que constitui
corromper a Democracia. Ademais, o discurso anticorrupção é feito sem uma
reflexão sobre suas seculares causas estruturais. Vira um pleito
moralista, utópico, pueril, parcial e manipulável. E se deixa de lado a
discussão da tão necessária reforma política. A grande mídia, claro, investe
nessa fenda. Não vai querer perder a oportunidade de pautar as massas. E se
interdite a voz de quem discordar do “discurso da verdade”.
Outra coisa. Não existe democracia sem partidos. A
última vez que dispensamos partidos foi durante a ditadura militar. A formação
democrática aqui é débil. Proibir a participação de partidos é menosprezar a
democracia. O fascismo é assim, enxerga os opositores como inimigos e contra os
inimigos vale tudo, inclusive a força. Cenas de intolerância e vandalismo se
acentuaram hoje em São Paulo – contou-me o amigo Marcelo Semer.
Histeria. Triste ver o que ocorreu em Brasília. O
Itamarati não é a Bastilha. Vi uma turba furiosa, caótica, sem propósitos em
frente ao prédio que não fosse o de destruí-lo. Se, por um lado, foram
proibidas as bandeiras dos partidos, as “bandeiras” simbólicas, em
boa medida, não estão obedecendo ao jogo democrático. Já que não dá (por
enquanto) para queimar o inimigo, queimar bandeiras é, simbolicamente, queimar
o espaço em que se permite a diferença.
“Não vou nem pra direita e nem pra esquerda, vou pra
frente”. Nada mais ideológico (alienado) do que uma frase dessa. Vai-se,
sempre, ideologicamente, seguir um rumo, ainda que se pense que se está “indo
em frente”. Não. “Eles não sabem o que fazem” (Zizek). Não existe um “ir pra
frente” quando não se sabe o referencial. Isso é utopia e toda utopia projeta a
imaginação para fora do real – em uma parte que é, também, parte nenhuma.
Utopia (outro lugar) que é, também, ucronia (outro tempo).
A maior debilidade da utopia: no instante em que se
apresenta, abre as portas para caminhos que podem ser piores do que os
atualmente trilhados. Isso porque a utopia é ausente de uma reflexão de caráter
prático e político sobre suas consequências na realidade existente e nas
instituições – e do que Ricoeur denomina de “o verossímil de uma época
determinada”. É um salto no escuro. Converte-se, então, em um tudo ou nada. O
lado negativo da utopia, além do risco de retrocesso, é o de fuga das
possibilidades factíveis. O de ansiar por uma realidade inverossímil e que, de
tão distante ou irrealizável, impede os avanços possíveis. Um discurso cético –
de contestação concreta – é muito mais realizável do que um niilista – de
negação geral ou ruptura absoluta. Muitas vezes a utopia é o álibi perfeito
para se desconstruir alternativas possíveis. Nesse sentido, é complementar e
instrumental à ideologia no seu sentido negativo e opressor.
O filho de um amigo meu, de 12 anos, queria participar
das manifestações de ontem. Os amigos da mesma idade disseram que ele teria que
ir porque “como iria falar para os filhos dele que não participou?” E foi(-se).
Ir por ir não quer dizer nada. Vivemos em uma época de liberdades públicas, mas
não se conserta o país como quem leva um carro a uma oficina. “Desculpe o
transtorno, estamos mudando o país”. Mudar para onde, se cada um,
individualmente, quer levá-lo autoritariamente para um lugar diferente? “Vem
pra rua que a rua é a maior arquibancada do Brasil” Só que o jogo aqui é jogado
por todo nós. E a primeira regra do jogo é respeitar a existência de regras.
Não se faz democracia renegando-a. O movimento se extrema. Não se sabe os
resultados. Em todo caso, quanto mais extremado, menor sua racionalidade e a
capacidade de diálogo aberto e respeitoso. Se continuar nesse crescente, a
Democracia estará em risco. E isso não tem nada de utópico.
Quem acordou não foi o Gigante, mas o monstro autoritário e violento. Fiquemos em casa hoje com o pequeno Hitler que vive em cada um de nós.
*Rosivaldo Toscano dos Santos Júnior é juiz de direito
e membro da Associação Juízes para a Democracia – AJD. POSTADO POR Marcos imperial.
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