terça-feira, 8 de outubro de 2013

O ADMIRÁVEL CANTO DO CISNE DE UM FILÃO QUE VALE A PENA REAVALIARMOS

Keoma (1976) é uma ave rara, única obra-prima da carreira de um diretor que sempre atuou mais como artesão do que como artista criativo, Enzo G. Castellari. É paradoxal que lhe tenha cabido realizar o último grande western italiano, provendo um admirável canto do cisne para o ciclo (saiba mais sobre este interessantíssimo filão, bastante influenciado pela efervescência revolucionária dos anos 60, aqui).

Afora esta moeda que caiu em pé, Castellari é lembrado por um western apenas razoável (Vou, mato e volto, 1967) e pelo fato de seu O expresso blindado da SS nazista (1978) ter inspirado remotamente o Bastardos inglórios do Quentin Tarantino --inclusive, The inglorius bastards havia sido o título dessa fita italiana no mercado estadunidense.

A história é de um mestiço que luta na Guerra Civil dos EUA e, ao voltar para casa, encontra a cidade assolada pela peste e subjugada a veteranos do exército confederado. Os três meios-irmãos, que sempre o hostilizaram, estão integrados na quadrilha.

Keoma (Franco Nero) cruza com uma mulher grávida sendo atormentada por suspeita de estar com a peste (Olga Karlatos) e a salva. O ato gratuito acaba o levando a confrontar todo o bando. Quando ela lhe indaga o porquê de a estar ajudando, ele só responde que "todos têm o direito de nascer".


O subtexto é riquíssimo:
·         a briga entre os quatro irmãos remete a Freud e suas teorias sobre a horda primitiva;
·         o nascimento da criança num estábulo é um paralelo bíblico, assim como a crucificação do herói;
·         a presença da velha índia nos momentos culminantes do filme vem da mitologia grega, ela é um tipo de deusa do destino;
·         o herói errante em busca de um desígnio que justifique sua vida também tem inspiração mitológica;
·         a peste se constituiu num elemento bíblico e mitológico ao mesmo tempo, além de estabelecer uma ponte com o escritor Albert Camus (A PesteO Estrangeiro), cujas obras são uma óbvia referência no delineamento do personagem principal;
·         finalmente, Castellari reverencia seus mitos cinematográficos -- Keoma é filho de  Shane, o herói protagonizado por Alan Ladd em Os Brutos Também Amam, enquanto a presença de Woody Strode no elenco constitui uma homenagem a John Ford, de quem era um dos atores prediletos.

E não foi só Castellari quem se superou, atingindo uma qualidade de que ninguém o suporia capaz. A dupla de compositores Guido e Maurizio de Angelis fez uma trilha musical extraordinária, capaz de rivalizar com as melhores de Ennio Morricone. O contraste do baixo com a soprano chega a nos arrepiar, as letras se casam maravilhosamente com o filme.

Em suma: trata-se de um clássico ainda não reconhecido (embora muitos já o tenham como cult). Só lamento não o poder postar aqui legendado; a dublagem é um substituto dos mais insatisfatórios.
Veja Keoma, na íntegra e dublado em português. Via http://naufrago-da-utopia.blogspot.com.br/

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Marcos Imperial

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