
Professora universitária faz galhofa diante do rapaz que foi ao aeroporto sem roupa de gala. É o símbolo do país que vê a educação como fator de distinção, e não de transformação.
O
condômino é, antes de tudo, um especialista no tempo. Quando se encontra com
seus pares, desanda a falar do calor, da seca, da chuva, do ano que passou
voando e da semana que parece não ter fim. À primeira vista, é um sujeito
civilizado e cordato em sua batalha contra os segundos insuportáveis de
uma viagem sem assunto no elevador. Mas tente levantar qualquer
questão que não seja a temperatura e você entende o que moveu todas as guerras
de todas as sociedades em todos os períodos históricos. Experimente. Reúna dois
ou mais condôminos diante de uma mesma questão e faça o teste. Pode ser sobre
um vazamento. Uma goteira. Uma reforma inesperada. Uma festa. E sua reunião de
condomínio será a prova de que a humanidade não deu certo.
Dia
desses, um amigo voltou desolado de uma reunião do gênero e resolveu desabafar
no Facebook: “Ontem, na assembleia de condomínio, tinha gente 'revoltada'
porque a lavadeira comprou um carro. ‘Ganha muito’ e ‘pra quê eu fiz faculdade’
foram alguns dos comentários. Um dos condôminos queria proibir que ela
estacionasse o carro dentro do prédio, mesmo informado que a funcionária paga
aluguel da vaga a um dos proprietários”.
Mais
à frente, ele contava como a moça havia se transformado na peça central de um
esforço fiscal. Seu carro-ostentação era a prova de que havia margem para
cortar custos pela folha de pagamento, a começar por seu emprego. A ideia era
baratear a taxa de condomínio em 20 reais por apartamento.
Sem
que se perceba, reuniões como esta dizem mais sobre nossa tragédia humana do
que se imagina. A do Brasil é enraizada, incolor e ofuscada por um senso comum
segundo o qual tudo o que acontece de ruim no mundo está em Brasília, em seus
políticos, em seus acordos e seus arranjos. Sentados neste discurso, de que a
fonte do mal é sempre a figura distante, quase desmaterializada, reproduzimos
uma indigência humana e moral da qual fazemos parte e nem nos damos conta.
Dias
atrás, outro amigo, nascido na Colômbia, me contava um fato que lhe chamava a
atenção ao chegar ao Brasil. Aqui, dizia ele, as pessoas fazem festa pelo fato
de entrarem em uma faculdade. O que seria o começo da caminhada, em condições
normais de pressão e temperatura, é tratado muitas vezes como fim da linha pela
cultura local da distinção. O ritual de passagem, da festa dos bixos aos carros
presenteados como prêmios aos filhos campeões, há uma mensagem
quase cifrada: “você conseguiu: venceu a corrida principal, o funil social
chamado vestibular, e não tem mais nada a provar para ninguém. Pode morrer em
paz”.
Não
importa se, muitas e tantas vezes, o curso é ruim. Se o professor é picareta.
Se não há critério pedagógico. Se não é preciso ler duas linhas de texto para
passar na prova. Ou se a prova é mera formalidade.
O
sujeito tem motivos para comemorar quando entra em uma faculdade no Brasil
porque, com um diploma debaixo do braço, passará automaticamente a pertencer a
uma casta superior. Uma casta com privilégios inclusive se for preso. Por isso
comemora, mesmo que saia do curso com a mesma bagagem que entrou e com a mesma
condição que nasceu, a de indigente intelectual, insensível socialmente, sem
uma visão minimamente crítica ou sofisticada sobre a sua realidade e seus
conflitos. É por isso que existe tanto babeta com ensino superior e
especialização. Tanto médico que não sabe operar. Tanto advogado que não sabe
escrever. Tanto psicólogo que não conhece Freud. Tanto jornalista que não lê
jornal.
Função
social? Vocação? Autoconhecimento? Extensão? Responsabilidade sobre o meio?
Conta outra. Com raras e honrosas exceções, o ensino superior no Brasil cumpre
uma função social invisível: garantir um selo de distinção.
Por
isso comemora-se também à saída da faculdade. Já vi, por exemplo, coordenador
de curso gritar, em dia de formatura, como líder de torcida em dia de jogo:
“vocês, formandos, são privilegiados. Venceram na vida. Fazem parte de uma
parcela minoritária e privilegiada da população”; em tempo: a formatura de um
curso de odontologia, e ninguém ali sequer levantou a possibilidade de que a
batalha só seria vencida quando deixássemos de ser um país em que ter dente é,
por si, um privilégio.
Por
trás desse discurso está uma lógica perversa de dominação. Uma lógica que
permite colocar os trabalhadores braçais em seu devido lugar. Por aqui, não nos
satisfazemos em contratar serviços que não queremos fazer, como lavar, passar,
enxugar o chão, lavar a privada, pintar as unhas ou trocar a fralda e dar banho
em nossos filhos: aproveitamos até a última ponta o gosto de dizer “estou te
pagando e enquanto estou pagando eu mando e você obedece”. Para que chamar a
atenção do garçom com discrição se eu posso fazer um escarcéu se pedi
batata-fria e ele me entregou mandioca frita? Ao lembrá-lo de que é ele quem
serve, me lembro, e lembro a todos, que estudei e trabalhei para sentar em uma
mesa de restaurante e, portanto, MEREÇO ser servido. Não é só uma prestação de
serviço: é um teatro sobre posições de domínio. Pobre o país cujo diploma
serve, na maioria dos casos, para corroborar estas posições.
Por
isso o discurso ouvido por meu amigo em seu condomínio é ainda uma praga: a
praga da ignorância instruída. Por isso as pessoas se incomodam quando a
lavadeira, ou o porteiro, ou o garçom, “invade” espaços antes cativos. Como uma
vaga na garagem de prédio. Ou a universidade. Ou os aeroportos.
Neste
caldo cultural, nada pode ser mais sintomático da nossa falência do que o
episódio da professora que postou fotos de um “popular” no saguão do aeroporto
e lançou no Facebook: “Viramos uma rodoviária? Cadê o glamour?”. (Sim, porque
voar, no Brasil, também é, ou era, mais do que se deslocar ao ar de um local a
outro: é lembrar os que rastejam por rodovias quem pode e quem não pode pagar
para andar de avião).
Esses
exemplos mostram que, por aqui, pobre pode até ocupar espaços cativos da elite
(não sem nossos protestos), mas nosso diploma e nosso senso de distinção nos
autorizam a galhofa: “lembre-se, você não é um de nós”. Triste que este
discurso tenha sido absorvido por quem deveria ter como missão a detonação,
pela base e pela educação, dos resquícios de uma tragédia histórica construída
com o caldo da ignorância, do privilégio e da exclusão."
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Olá queridos leitores, bem vindo a pagina do Blog Imperial. Seu comentário é de extrema importância para nosso crescimento.
Marcos Imperial