
Marco Civil aprovado: dia histórico para a liberdade de
expressão. Câmara aprova texto que contraria interesses poderosos, garante
direitos aos internautas e trata a comunicação como direito fundamental, e não
uma mercadoria.
Pedro Ekman e Bia Barbosa*
Guardem o dia 25 de março de 2014 na memória. Este
dia será lembrado como o dia do Marco Civil da Internet em todo o mundo. Neste
dia, a Câmara dos Deputados aprovou um projeto de lei que tem todas as
características de um projeto impossível de ser aprovado numa Casa como essa. A
principal delas: o fato de contrariar interesses econômicos poderosos ao
garantir direitos dos cidadãos e cidadãs. O Marco Civil da Internet aprovado
aponta claramente para o tratamento da comunicação como um direito fundamental
e não apenas como um negócio comercial. Trata-se de algo inédito na história
brasileira, que só foi possível por um conjunto de fatores.
Em primeiro lugar, a intensa participação e
mobilizações de organizações da sociedade civil e ativistas da liberdade na
internet, que estiveram envolvidos com o Marco Civil desde sua primeira redação
até a vitória obtida nesta terça-feira na Câmara. O fato de ser um texto
elaborado com ampla participação popular garantiu ao Marco Civil uma
legitimidade conferida a poucas matérias que tramitam pelo Congresso Nacional.
Em segundo lugar, o relatório substitutivo do texto
ficou a cargo do deputado Alessandro Molon (PT/RJ), que se mostrou um
persistente articulador e negociador, ouvindo os mais diferentes interesses em
jogo e buscando acomodá-los sem comprometer os três pilares centrais do texto:
a neutralidade de rede, a liberdade de expressão e a privacidade dos usuários.
Em terceiro, o governo, que já se mostrava adepto
do Marco Civil, comprou a briga em sua defesa após as denúncias de espionagem
da Presidenta Dilma feitas por Eduard Snowden. Sem isso, talvez o Marco Civil
da internet não tivesse sido colocado em urgência constitucional na Câmara, e
poderia estar ainda na longa fila de projetos estratégicos para o país à espera
de entrada na pauta do plenário.
Mesmo assim, há duas semanas, ninguém – nem o
governo, nem o relator, nem a sociedade civil – seria capaz de prever uma
votação como a deste dia 25 de março, feita simbolicamente, porque apenas um
partido, o PPS de Roberto Freire, orientou voto contrário. Como escrevemos
neste blog, a votação do Marco Civil havia sido capturada pelo
jogo eleitoral de 2014.
De lá pra cá, muitos se perguntam, o que precisou
acontecer para o jogo virar a favor dos direitos dos internautas? Em primeiro
lugar, o governo conseguiu reacomodar a maior parcela insatisfeita de sua base.
Dilma fez uma reforma ministerial, distribuiu cargos em autarquias, liberou
emendas no Congresso. Trazendo a base de volta, ficaram “do lado de lá” o PMDB
e os partidos de oposição de direita. Mas DEM e PSDB se mostraram inteligentes nesta
jogada, e se distanciaram de Eduardo Cunha, líder do PMDB e general do exército
contra o Marco Civil. Em sua briga contra o governo por poder no Congresso,
Cunha, apelidado pela revista IstoÉ de “sabotador da República”, esticou demais
a corda – e saiu queimado. Nem a direita clássica quis abraçá-lo na reta final.
Os sinais de derrota começaram a se avizinhar e
ficou mais fácil para o governo comprar o passe do PMDB. A conta ninguém
conhece ao certo, mas certamente envolve acordos em torno da MP 627/2013, sobre
tributação do lucro de empresas brasileiras no exterior, da qual Cunha é
relator. Em paralelo, o governo abriu mão da obrigatoriedade da manutenção de
data-centers no Brasil – o que fez bem – e incluiu uma consulta à Anatel e ao
Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br) na regulamentação das exceções à
neutralidade de rede.
Neste contexto, a permanente pressão da sociedade
civil nas redes, em defesa da aprovação do texto, surtiu efeito pra lá de
positivo. Cerca de 350 mil pessoas assinaram a petição online puxada por
Gilberto Gil; tuitaços com as hashtags #VaiTerMarcoCivil e #EuQueroMarcoCivil
atingiram os trend topics brasileiro e mundial por semanas seguidas; artistas e
o fundador da Web Tim Berners-Lee declararam apoio ao texto; e defensores da
liberdade de expressão marcaram presença nos corredores da Câmara por semanas a
fio. Nesta terça, o clima de “aprovou” era tal que o presidente da Casa,
Henrique Eduardo Alves, chegou a anunciar, em tom de brincadeira com os
ativistas, uma cerveja de celebração para o fim da noite.
Que partido então escolheria não sair bem na foto e
perder a oportunidade de dizer que votou em favor de uma lei tão importante
para o povo brasileiro?
Os avanços do Marco Civil
O ineditismo do Marco Civil da Internet está também
em ser uma das raras legislações do mundo no campo da internet que cria
mecanismos de proteção do usuário, e não o contrário. Será uma lei que servirá
de modelo para todas as democracias que buscam reforçar a liberdade nas redes e
os direitos humanos.
Entre tantas garantias importantes trazidas pelo
texto, as mais significativas talvez estejam expressas nos artigos 9, 19 e 7 do
projeto.
O artigo 9, visto como o coração do projeto,
protege a neutralidade de rede. Ou seja, o tratamento isonômico de quaisquer
pacotes de dados, sem distinção por conteúdo, origem e destino, serviço,
terminal ou aplicação. Isso significa que quem controla a infraestrutura da
rede tem que ser neutro em relação aos conteúdos que passam em seus cabos. Isso
impede, por exemplo, que acordos econômicos entre corporações definam quais
conteúdos têm prioridade em relação a outros. A medida é a alma da manutenção
da internet como um ambiente em que todos se equivalem independentemente de seu
poder econômico. Afinal, ninguém – nem mesmo empresas como a Globo – quer que a
operadora do cabo decida sozinha que conteúdos terão forte presença e quais
ficarão escondidos na rede. Isso levaria a uma “concentração de conteúdo”,
semelhante à que existe no mercado de TV, também na internet. Só que a Globo
não seria a monopolista da vez.
Já o artigo 19 delega ao sistema judicial a decisão
da retirada de conteúdos na internet, debelando boa parte da censura privada
automática, preventiva, existente hoje na rede. Atualmente, inúmeros provedores
de conteúdo, a partir de simples notificações, derrubam textos, imagens, vídeos
etc. de páginas que hospedam. Ao desresponsabilizar os provedores por conteúdos
postados por terceiros, o Marco Civil da Internet cria uma segurança jurídica
ao provedor e deixa o caminho aberto para a livre expressão do usuário. Afinal,
ao contrário do que muitos pensam, não é a ausência de regras que torna a
internet um ambiente livre, mas sim a existência de normas que defendam a livre
manifestação de ataques arbitrários e autoritários.
Por fim, o artigo 7 assegura a inviolabilidade da
intimidade e da vida privada e o sigilo do fluxo e das comunicações privadas
armazenadas na rede. Isso fará com que as empresas desenvolvam mecanismos para
permitir, por exemplo, que o que escrevemos nos e-mails só será lido por nós e
pelo destinatário da mensagem. Assim, uma vantagem privativa das cartas de
papel começa a ser estendida para os correios eletrônicos. O mesmo artigo
assegura o não fornecimento a terceiros de nossos dados pessoais, registros de
conexão e de aplicação sem o nosso consentimento, colocando na ilegalidade a
cooperação das empresas de internet com departamentos de espionagem de Estado
como a NSA.
Essas e outras medidas de proteção da privacidade
são fragilizadas pelo único problema significativo de todo o Marco Civil: o
artigo 15, que compromete seriamente nossa privacidade ao obrigar que empresas
guardem por seis meses, para fins de investigação, todos os dados de aplicação
(frutos da navegação) que gerarmos na rede. Isso inverte o princípio
constitucional da presunção de inocência ao aplicar um tipo de grampo em todos
os internautas. A obrigação da guarda de dados também gera a necessidade de
manutenção de todos esses dados em condições de segurança, sobrecarregando
sites e provedores de encargos econômicos. O alto custo poderá levar à comercialização
desses dados, criando uma corrida pelo uso da privacidade como mercadoria.
Infelizmente, as movimentações que destravaram o
processo de votação do texto na Câmara não foram capazes de desconstruir tal
imposição feita pelas instituições policiais ao projeto. Organizações da
sociedade civil que se posicionaram contra este aspecto do texto buscarão sua
alteração no Senado ou, se necessário, através do veto presidencial. Afinal, se
Dilma Rousseff foi às Nações Unidas exigir soberania e privacidade para suas
comunicações, não pode repetir uma brecha deste tamanho para a vigilância dos
internautas brasileiros.
Por fim, os lobbies econômicos e pressões políticas
que se movimentaram na Câmara não estão mortos. Apesar da declaração do
presidente do Senado, Renan Calheiros, de que o Marco Civil será votado com
rapidez na Casa revisora, nada garante que o jogo será fácil. Há uma longa
jornada pela frente até a sanção presidencial. E, depois de sancionada a lei,
caberá à sociedade civil defender os direitos dos internautas nos termos de
regulamentação do Marco Civil, assim como em sua implementação. Não à toa, a
entidade representativa das operadoras de telecomunicações já se pronunciou
publicamente, afirmando que o Marco Civil “assegura a oferta de serviços diferenciados”.
É a disputa pela interpretação do texto entrando em campo.
Democracia não é um sistema em que as coisas se
resolvem facilmente. A batalha ganha em 25 de março não resolve toda a questão,
mas cria condições para a construção de um caminho no qual finalmente podemos
seguir livres. E isso não é pouca coisa.
* Pedro Ekman e Bia Barbosa são integrantes da
Coordenação Executiva do Intervozes. CartaCapital.
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Marcos Imperial