André J. Gomes, Revista Bula
'Alguém passou aqui dançando. Você viu? Entrou
por aquela porta ali, varreu os cômodos rodopiando a leveza dos anjos, girou
sobre os pés deslizando pela casa, como se minha casa fosse um enorme salão no
meio do mundo todo e a humanidade, seu corpo de baile.
Em sua dança, chegou pisando leve, cantando
baixinho como quem reza a Nossa Senhora dos Pequenos Milagres para que o afeto
seja nosso eterno ato de contrição. E que entre uma pedra e outra do caminho
floresçam mudas de bom dia, boa tarde, boa noite, por favor e obrigado.
Lá pelas tantas da vida, quando o vazio se torna
insuportável e até o mais resoluto e resistente ser solitário corre para
preenchê-lo de qualquer sorte, alguém passou aqui dançando. E nos sons
dispersos da música que anunciava sua chegada, trouxe ares de vida nova. Como a
carícia furiosa que condiciona toda criação.
Alguém passou aqui dançando. Dançou como quem
enfeita o dia e enfeitiça a noite, dá jeito no mundo e pede a Deus para baixar
um decreto irrevogável, determinando a fraternização impossível e esperada
entre todos os bichos, a começar pelo animal humano.
Dançou seus dois pra lá, dois pra cá como quem
repete um verso simples, daqueles que atravessam o pensamento, anunciando o
quanto somos nada, meros e pequenos tripulantes de um tempo que ora despenca
rumoroso por corredeiras xucras, ora desliza manso sobre tardes gentis de festa
e amigos.
Você deve ter visto. Ah, você viu que alguém
passou aqui dançando como quem espera nos encontrar com flores nas mãos e
vergonha na cara, sobrevivendo a tudo, resistindo a tanto não e tanto sim,
desviando de chutes e socos, tapas e joelhadas nas costas.
Alguém passou aqui dançando, e em seu sapateado
vigoroso estremeceu e rachou o solo duro de ódio das razões indiscutíveis, dos
ex-amigos intoxicados por suas certezas, ruminando maldades a Deus e ao mundo.
Assim dançando, dançando, mandou longe quem nos
amava ontem, nos odeia hoje e há de nos esquecer amanhã. Salvou-nos intocados
da chuva de lâminas da burrice, da inveja, da intolerância, da cegueira, da
empáfia, das mentiras insistentes e das verdades absolutas.
E em seus passos aéreos de graça, nos deu saudade
dos pequenos comércios de rua, das lojas conjugadas às casas de seus
proprietários empedernidos. Dos vendedores de suspiro e salgadinho a granel, do
sol confortando os vira-latas deitados na calçada.
Dançando, alguém nos conduziu de volta às lojas
de roupas usadas, as prateleiras entupidas de sandálias de solas gastas,
marcadas pelo peso de seus antigos donos, esperando novos compradores. Em sua
dança, resgatou os salões de bairro vazios e seus barbeiros dormindo sentados
em cadeiras giratórias, às três horas da tarde de uma segunda-feira que dura
todos os dias do ano.
Alguém passou aqui dançando. E dançando jogou em
minha cara o quanto nascemos para nada, senão para aprender o passo a passo sem
fim do amor, deslizando através das camadas de sonhos desidratados, à espera da
água das possibilidades que o farão crescer e acontecer.
Você bem viu. Não foi o vento que bateu aquela
porta, bagunçou o varal, espavoriu o cachorro. Foi o amor que passou aqui
dançando."
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Marcos Imperial