
"E então meu pai, que andava sumido no tempo, deu as caras
numa lembrança. Disseram lá e cá que ele andava com saudade de mim. Saiu voando
por cima das casas, feliz e triste, apertando os olhos para ver se me via
lá de cima. Ah… meu pai. Aí me deu saudade de você. Mas foi saudade alegre.
Saudade da graça das suas piadas sem graça, do perfume barato da sua loção
pós-barba, do seu jeito de ver a vida seguindo no passo manso das moças.
Aquelas moças da cidade nossa. Deu saudade.
Ainda hoje, agorinha, olhei meu filho e vi você,
meu pai. Ele não sabe, mas é igual ao avô no jeito de ler gibi, na forma de
segurar o garfo, de calçar as meias, de descascar mexerica virando a cara para
proteger os olhos.
A vida segue como quis você, no caminho atento da
nossa gente. Passa o tempo e meu filho também envelhece. Vai se tornando um
pequenino você, como eu mesmo levo no rumo dos dias a face endurecida de sol e
sonho dos meus avós. Seu neto cresce ligeiro, meu pai. Você precisa ver. Daqui
a pouco será gente grande. É que a vida vai no passo manso das moças, mas até
as moças de passo manso andam correndo de quando em vez, aqui e ali. Meu garoto
cresce. É já um homenzinho. E mesmo quando a vida fizer dele um bruto de um
homem, ele há de seguir menino em algum lugar.
Porque as crianças que sobrevivem em nós, aqui
bem dentro, escondidas em nossos escombros internos, aproveitam quando estamos
dormindo e se encontram por aí, em algum lugar. Passam juntas o tempo que dura
os nossos sonhos, fazem brinquedo de nossos medos, pisam dançando nossos
rancores como poças d´água na chuva. E assistem, sentadas
na grama molhada, à vida seguindo no passo manso das moças.
Risonhas, as crianças que um dia fomos giram as
tramelas das portas que escondem nossos choros presos, rompem os diques. Fazem
sua arte e saem pulando alegria, caminhando vitoriosas na contramão da
enxurrada de lágrimas libertas. Os meninos que fomos nós ainda fazem festa com
os cachorros roliços de rabo cortado, se espantam com os trovões e os
relâmpagos, os estalos espontâneos na madeira do telhado, os rojões da
quermesse. Ainda têm medo de cara feia, cobra cega, escada alta, inseto que
voa.
Aos poucos, nos tornamos velhos cheios de saudade
e cabelos brancos. Mas as nossas crianças de dentro, meu pai, essas não
envelhecem, não morrem, não vão. Elas vivem para sempre nos pequenos que virão,
enquanto a vida continua em frente. Seguindo no passo manso das moças.
É, meu pai. Você e eu e todo mundo estamos condenados
à graça da existência eterna. No riso franco e inocente do seu neto, voltam à
vida os primeiros rebentos que habitaram o mundo, descobrindo a maldade e a
beleza. Nos sonhos que já tem, meu menino encontra os pequenos que nós e todos
os nossos antepassados um dia fomos. As crianças que ainda somos.
Assim seguimos em frente, descobrindo que a
esperança é uma prática diária.
De resto, por aqui tudo vai bem. É que hoje eu olhei meu
filho e pensei em você, meu pai. E na sua lembrança revi minha cria com olhos
novos de amor e saudade. Mirei mais adiante e vi uma moça em seu passo de quem
vai tranquila, os olhos grandes, um sorriso de sol. Ela caminhava sozinha,
trazendo o mundo a tiracolo numa pequeninabolsa de crochê. É a vida. A
vida seguindo no passo manso das moças, chegando com a alegria divina das
crianças que seremos para sempre."
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Marcos Imperial