Peter Pan entra em cena: imagem extraída da primeira edição da obra, de
1930 "A eterna
magia
de Peter Pan
é
alimentada pela Terra do Nunca que carregamos, cada um com seu próprio sonho
Por Lilian Corrêa, Carta
Fundamental
Quem nunca sonhou com poder voar por aí e conhecer
lugares mágicos muito além da imaginação? Ultrapassar as barreiras do som e das
alturas, os limites do tempo e da idade e, principalmente, as regras
determinadas por aquilo que dizem ser certo ou errado?
E quando o sonho vira realidade? Parece estranho,
mas a Literatura pode nos proporcionar tudo isso, sabemos... e Peter Pan, a
obra de J. M. Barrie, nos traz essa magia toda com maestria.
Data de 1904 a estreia de uma peça teatral escrita
por Barrie de nome Peter e Wendy, na qual o personagem Peter é protagonista e,
em 1911, o texto foi lançado em forma de livro com o título
sendo, anos mais tarde, adaptado para Peter Pan. Mas de onde surgiu toda a
temática? O que de fato inspirou o autor a escrever sobre esse menino que
encantou e ainda encanta adultos e crianças?
Há fatos que envolvem a vida de J. M. Barrie, bem
como há especulações sobre as reais origens que levaram o autor a escrever a
história das aventuras na Terra do Nunca. Contam os biógrafos de Barrie que o
autor conheceu, já adulto, os filhos do casal Arthur e Sylvia Llewelyn Davies:
George, Michael, Nicholas, Jack e Peter e, como amigo do casal, compartilhava
muito tempo ao lado das crianças e gostava muito de suas companhias. Criava
muitas histórias de aventuras para contar aos meninos.
Alguns pesquisadores dizem que um dos meninos foi a
inspiração para que Barrie criasse a personagem Peter Pan, e outros devem a
inspiração ao irmão do autor, David, falecido aos 6 anos de idade, perda que
provocou um trauma terrível na família e deixou a senhora Margareth Ogilvy, mãe
dos meninos, em profunda depressão. Durante toda sua vida, J. M. Barrie tentou
fazer com que a mãe sentisse por ele ao menos parte do orgulho que sentia por
David e tentava fazer de tudo para se parecer com o irmão, chegando a vestir
suas roupas e criando uma relação obsessiva com a mãe.
Esse fato marcou o então garoto para sempre e a mãe
costumava dizer que seu irmão se fora tão jovem que ficaria imortalizado
eternamente como criança e Barrie acabou tomando isso como verdade, mesmo que
inconscientemente, o que pode ser comprovado pela personagem Peter Pan, o
menino que não queria crescer.
Mas o que há de tão especial nessa narrativa e o
que tanto atrai o público leitor? Vamos descobrir juntos!
A narrativa de Peter Pan ocorre em tempo algum ou,
talvez fosse mais apropriado dizer, em um tempo indeterminado. São apresentadas
características temporais que dizem respeito às descrições físicas e
geográficas dadas pelo narrador quanto à família Darling e sua casa, na cidade
de Londres, mais precisamente na região de Kensington Gardens, descrições
relacionadas à aparência das personagens e ao seu comportamento social, mas,
quando se trata do mundo mágico em que Peter vive, denominado a Terra do Nunca,
tudo fica bastante obscuro, começando do endereço: “Segunda à direita e depois
direto até amanhã de manhã”.
A Terra do Nunca dispensa descrições... é um
espaço idílico onde cabem os sonhos de cada uma das crianças que nela habitam e
de todos que um dia a visitarem. Segundo a escritora Flávia Lins e Silva,
na apresentação da edição de Peter Pan, da editora Jorge Zahar, o que é
possível saber sobre a Terra do Nunca é que: “... É sempre mais ou menos uma
ilha, com pinceladas maravilhosas de cor aqui e ali, e recifes de coral e
barcos velozes prontos para zarpar, e esconderijos selvagens e secretos, e
gnomos que quase sempre são alfaiates, e cavernas atravessadas por rios, e
príncipes com seis irmãos mais velhos, e uma cabana caindo aos pedaços, e uma
velhinha bem baixinha com um nariz de gavião.
O genial em Barrie é que ele descreve a ilha com
detalhes tão minuciosos e criativos que quase acreditamos que vai nos oferecer
uma descrição mais precisa e definida dessa ilha. Logo depois, porém, ele
quebra essa expectativa, com outra informação: “É claro que as Terras do Nunca
variam muito. A de João, por exemplo, tinha uma lagoa com flamingos voando em
cima, nos quais ele atirava. Já a de Miguel, que era muito pequeno, tinha um
flamingo com lagoas voando em cima”.
O que fica claro: cada um tem a sua própria Terra
do Nunca, cada um tem seu próprio sonho e sempre há um jeito de o sonho ser
encontrado e nunca ser perdido. Esta é a mensagem implícita no discurso que a
narrativa de Peter Pan carrega. Pan deriva do mito grego Pã, deus dos bosques,
símbolo da natureza – grande parte da narrativa se passa junto à natureza e às
crianças, os ditos meninos perdidos, vivem suas aventuras junto a seres
imaginários, mitológicos, folclóricos, como sereias, piratas e fadas na mesma atmosfera,
ora simpática ao estilo aventureiro do grupo de crianças, ora provocativa e
ameaçadora, sombria.
A história de Peter começa e termina em Kensington
Gardens: foi para aquele parque que ele, ainda bebê, fugiu voando quando soube
dos planos de seus pais para sua vida adulta: “Não quero nunca ser adulto! –
disse, com raiva. – Quero sempre ser criança e me divertir. Por isso fugi para
Kensington Gardens e vivi muito tempo com as fadas”.
Ali mesmo voltou para buscar aquela que contava
histórias, Wendy, e acabou por levá-la para a Terra do Nunca juntamente com
Miguel e João, seus irmãos, para a maior de suas aventuras. Também foi ali que,
em 1906, J. M. Barrie doou uma estátua em bronze de Peter Pan para o parque,
como símbolo das crianças que ali brincavam e o inspiraram a escrever sua mais
famosa história.
No Brasil, foi o velho e bom Monteiro Lobato quem
nos trouxe à luz a narrativa do escritor inglês, nos idos da década de 1930. A
seu modo, como sempre o fez, o dono do Sítio reconta as travessuras de Peter
Pan e sua visita aos netos de Dona Benta e o que aprontou por lá com toda a
turma, com Emília, por exemplo, cortando a sombra de Tia Nastácia. Seu pó de
pirlimpimpim que fez de Emília uma boneca falante foi também a solução
encontrada por tantos outros tradutores e adaptadores da obra de Barrie para o
pó de fada utilizado para fazer as crianças aprenderem a voar!
Temas para reflexão
Diversos são os temas trabalhados na narrativa de
Barrie, mesmo que inocentemente e podem ser discutidos a partir da leitura da
obra por qualquer faixa etária, quer seja no Ensino Fundamental, quer seja no
Ensino Médio, tudo depende do tipo de atividade que se pretende propor a partir
da leitura. Uma primeira questão que pode ser estudada é a da figura materna
ou, melhor dizendo, a contradição ausência versus presença da mãe na narrativa.
Peter vangloria-se por não ter uma mãe por perto, dizendo que “ele não apenas
não tinha uma mãe, como não tinha a menor vontade de ter uma. Achava que todo
mundo dava uma importância exagerada para as mães. Wendy, no entanto,
imediatamente, achou que estava diante de uma tragédia”.
Obviamente, Wendy discorda do posicionamento de
Peter, uma vez que estava sendo educada segundo os preceitos de uma sociedade
que ainda seguia os padrões vitorianos, preparada para ser mãe e esposa, cuidar
da casa, do futuro marido e dos filhos, mesmo que ainda fosse apenas uma
criança, embora fosse ainda pequena. Ouvir um absurdo daqueles era inimaginável,
tanto para uma criança quanto para um adulto, imagine para uma criança criada
para se comportar como adulto em um mundo de adultos! Além disso, a ausência de
uma mãe implicaria descuido, na bagunça... e Peter usa isso para persuadir
Wendy a acompanhá-lo na viagem à Terra do Nunca, apelando à sua veia
maternal:
– Wendy, venha comigo e conte as histórias para os
outros meninos.
É claro que ela adorou o convite, mas disse:
– Ah, mas eu não posso. Pense na mamãe! Além do
mais, não sei voar.
(...)
– Wendy – disse o safado –, você ia poder ajeitar
nossas cobertas à noite.
– Ai!
– Ninguém nunca ajeitou nossas cobertas.
– Ai! – disse Wendy, estendendo os braços para ele.
– E você ia poder costurar nossas roupas e fazer
bolsos nelas. Nós não temos bolso.
Como Wendy poderia resistir? (BARRIE, 2012,
págs. 65 e 66)
A ausência da figura materna na Terra do Nunca
acaba, na verdade, servindo como moeda de troca para Peter Pan, como uma forma
de seduzir Wendy a aceitar a ideia de abandonar sua família como ele o fizera
no passado... a diferença é que ela o faz em companhia de seus dois irmãos. A
menina aceita a oferta de Peter Pan não somente pela possibilidade da aventura,
mas também porque aquele menino lhe chamava a atenção, sentia-se lisonjeada em
sua presença e gostava de seus galanteios, mesmo que fossem genéricos demais!
Essa temática do interesse pela figura do sexo
oposto se confirma com a fada Sininho e a Princesa Tigrinha, ambas também de
alguma maneira interessadas nesse menino que de forma nenhuma se deixaria
prender por algum tipo de laço - talvez nem sequer entendesse o que elas
pensavam sentir por ele, uma vez que o que lhe interessa é a liberdade e a
possibilidade de poder ser o mais aventureiro possível.
Contamos ainda com as figuras masculinas, o senhor
Darling e seus filhos, o próprio Peter, o Capitão Gancho e os piratas e os
Meninos Perdidos. O senhor Darling é apresentado como um homem muito preocupado
com as questões financeiras, distante dos filhos e ridicularizado por eles,
muito preocupado em sempre ser igual a seus vizinhos. Na noite em que resolve
prender Naná, a cadela-babá de seus filhos, as crianças fogem e o senhor
Darling passa a se sentir culpado por isso e se impõe o castigo de dormir na
casa da cadela até que seus filhos voltassem.
O Capitão Gancho e os piratas representam, a
princípio, o perigo, mas são, na verdade, figuras patéticas e atrapalhadas, com
medo de coisas absurdas, e Peter Pan, um garoto que não quer crescer para não
virar um homem patético como os demais descritos, que lidera um bando de
meninos abandonados ou fugitivos, na mesma situação que ele, denominados
Meninos Perdidos – a genialidade de Barrie está em expor problemas tão sérios
de maneira tão natural e sutil na narrativa.
E todas essas aventuras, é claro, culminam no navio
do Capitão Gancho, com Peter Pan como herói, salvando a todos, e com o Capitão
finalmente tendo o seu merecido castigo!"
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