A figura de Chico Mendes reúne todos os elementos
que fazem de líderes e defensores de uma causa verdadeiros mitos.
Por Cristina Uchôa e Glauco Faria, via http://www.revistaforum.com.br
Passaram-se
duas décadas após a morte de Francisco Alves Mendes Filho, o seringueiro mais
conhecido como Chico Mendes, e seu nome é reconhecido e lembrado como um dos
brasileiros mais importantes do século passado. Para quem observa hoje, no
entanto, fica a questão: como alguém que liderava trabalhadores rurais e
empreendia uma luta local passou a ter tanta relevância em termos mundiais?
Diversos fatores contribuíram para que ele pudesse se tornar um símbolo da
defesa da Amazônia. Sua boa relação com a imprensa internacional, em uma época
em que o ambientalismo ganhava força em todo o planeta, foi fundamental, mas é
claro que essa projeção só foi possível porque a sua luta representava a defesa
de ideais que eram comuns a inúmeras pessoas em contextos absolutamente
distintos.
Se a batalha
contra o desmatamento fazia com que os ambientalistas vissem Chico Mendes com
simpatia, seu empenho na organização dos trabalhadores rurais em Xapuri e
depois em todo o Acre também atraía a admiração e o respeito de muitos sindicalistas
e de pessoas ligadas à esquerda. Dentre eles, aquele que seria presidente da
República pelo Partido dos Trabalhadores, Luiz Inácio Lula da Silva, que foi
várias vezes a Xapuri apoiar o amigo. Chico foi sindicalista, articulador de
alianças com movimentos sociais e entre os povos da floresta, além de ter
dialogado diretamente com o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e
participado institucionalmente do cenário político como vereador emedebista em
Xapuri e, mais tarde, como militante e candidato a vários cargos eletivos pelo
PT. Em geral, empreendia sua luta por diversas vias paralelas, o que lhe
garantia inserção em muitos nichos, alguns pouco explorados tanto por
trabalhadores como pela própria classe política tradicional.
Alfabetizado
somente aos 17 anos, Chico tem no professor das primeiras letras uma grande
referência na sua formação. Euclides Távora era um comunista que se refugiou na
Amazônia, a exemplo de tantos outros que enfrentaram a selva durante os
diversos períodos de clandestinidade do Partidão. Ex-integrante da Coluna
Prestes, esteve envolvido também com o movimento dos mineiros na Bolívia e
participou da Revolução de 1952 junto com os camponeses de lá. Depois de
conviver com seringueiros bolivianos por algum tempo, resolveu passar para o
lado brasileiro.
É o próprio
Chico que fala da influência de Távora em entrevista concedida ao professor
aposentado da Universidade Federal do Acre, Pedro Vicente da Costa Sobrinho,
cerca de 20 dias antes da sua morte. “Muitos seringueiros que moravam nas
proximidades o conheciam. Alguns se deslocavam até sua colocação para
conversar. Ele falava do preço da borracha, da exploração dos seringueiros.
Isso com muita cautela. Lia as notícias dos jornais e se dizia também
seringueiro, só que não sabia cortar seringa”, conta. “Enquanto estava dando as
aulas, às vezes ele anotava as coisas, mas em seguida queimava tudo que
escrevia”, completa.
Acompanhando
os acontecimentos do golpe militar de 1964 pelas rádios internacionais como a
BBC de Londres e a Central de Moscou, os seringueiros ouviam as denúncias de
prisões e torturas promovidas pelo regime autoritário do Brasil. Foi nesse
período, em 1965, antes de sair do Acre para um destino incerto, que Euclides
Távora praticamente incumbiu o seringueiro Francisco de uma missão. “Dizia ele:
Chico, nós temos pela frente duros anos de repressão, de ditadura, de linha
dura, mas fique certo que o movimento de libertação neste país e de qualquer
lugar do mundo nunca se acabará. Eu ficava emocionado quando ele colocava
aquilo”, contou o líder a Pedro Vicente. “[Távora] falava que o ideal
revolucionário de liberdade iria continuar vivo. A ditadura poderia continuar
15, 18 anos, mas não duraria todo o tempo. O movimento de resistência iria se
fortalecer, abrindo brechas para criação de novas associações e sindicatos.
Apesar do controle das organizações trabalhistas pelo governo, é lá que você
tem que atuar.”
“Àquela altura Chico era uma personagem
diferenciada dos líderes locais, pois tinha uma forte formação intelectual e
política”, explica o professor Pedro Vicente. Essa bagagem foi fundamental para
a atuação de Chico na década seguinte, que determinaria mudanças importantes na
região. Nos anos 70, o governo federal passou a priorizar a ocupação da
Amazônia com grandes projetos de infra-estrutura voltados para áreas como a
agropecuária, a exploração madeireira e a mineração. Tudo isso envolvia também
o abandono do apoio estatal à produção de borracha. “O Delfim Netto fechou o
Banco da Borracha e o governo instituiu incentivos fiscais para grandes
empresas se instalarem na região amazônica”, conta Edílson Martins, último
jornalista a entrevistar Chico Mendes em vida (ver aqui).
Assim,
fazendeiros vindos do Sul e Sudeste compravam terras a preço baixo e iam se
instalar, a pretexto de ter o “justo título”, nas terras já ocupadas pelos
seringueiros. Se por um lado a empresa seringalista e a estrutura quase
escravista de exploração do trabalho a que os trabalhadores rurais eram
submetidos estavam em xeque, em dado momento a própria sobrevivência de quem
ali estava ficou ameaçada. A conta é simples. “Enquanto uma estrada de seringa
rendia trabalho para cinqüenta, às vezes cem famílias no mesmo terreno, quando
o terreno era ocupado pela pastagem para o gado eram necessárias duas ou três
famílias”, esclarece Martins.
Chico Mendes em sua casa na cidade de Xapuri (AC), com seus dois filhos: Elenira e Sandino Mendes (Foto Miranda Smith, Miranda Productions, Inc./Wikimedia Commons)
A organização dos trabalhadores
Diante da
iminência de uma catástrofe social, os seringueiros começam a se organizar para
evitar a derrubada da floresta. A Confederação Nacional dos Trabalhadores da
Agricultura (Contag), chamada a campo pelo Ministério do Trabalho e pela Igreja,
que se preocupava com as ameaças e a violência no campo, debruçava-se sobre os
efeitos da crescente especulação fundiária e buscava articulação nos estados
da Amazônia. Não demorou a chegar uma comissão ao estado do extremo oeste do
país, em 1975. Em novembro, membros da Confederação utilizaram o salão
paroquial da cidade de Brasiléia para dar um curso de formação sindical aos
trabalhadores da região. Entre eles estava Chico Mendes. Contudo, quem se
destacava era Wilson Pinheiro, camponês que chamava atenção pela firmeza da
fala e pelo forte físico.
“Meu pai tinha
sido estivador em Porto Velho, nas andanças de correr atrás da vida, depois de
ter saído fugido de Rio Branco aos 18 anos, com o assassinato do pai dele, meu
avô”, conta Iamar Pinheiro, uma das sete filhas de Wilson (além delas, há mais
um, homem), hoje moradora de Epitaciolândia, no interior do estado. O pai de
Wilson Pinheiro era também pequeno agricultor e foi assassinado depois de
conflitos por terra. A família, que migrara de Manaus, voltou correndo, mas
Wilson teve que “correr atrás da vida”, encontrando emprego na estiva.
No setor em
que os trabalhadores historicamente enfrentam explorações, Pinheiro logo
associou-se à entidade de classe e fez da participação sindical uma prática de
sobrevivência. Ao se mudar para o Acre, levou consigo a experiência que
chamaria a atenção dos mobilizadores da Contag. Assim, em dezembro de 1975,
fundava o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Brasiléia, sendo eleito
presidente do Conselho Fiscal da entidade. Na prática, era ele a liderança de
referência na região. Chico foi eleito secretário geral.
Surgiriam logo
depois os sindicatos de trabalhadores rurais de Rio Branco e Xapuri. Com mais
organização, era preciso agora escolher a melhor estratégia para evitar a
derrubada dos seringais. Chico Mendes, em uma palestra proferida em 1988 na
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo
(FFLCH/USP), promovida pelo geógrafo Ariovaldo Umbelino de Oliveira, explicava
as dificuldades àquela altura. “Nós tentamos por via legal, a partir de 1975,
barrar os desmatamentos. Ou seja, recorrendo a advogados, por via judicial, na
tentativa de impedir os desmatamentos. Só que tanto a polícia, naquela época,
como os juízes eram comprados pelos latifundiários”, acusava.
Assim, acabou
sendo desenvolvida uma técnica pacífica para combater o desmatamento: o
“empate”. De novo, é Chico quem explica, na palestra da USP. “Então nós
decidimos criar um movimento pacifista e aí acionamos mulheres e crianças para
o movimento de empate. Quando a polícia se deslocava para uma área, nos
deslocávamos também, com homens, mulheres e crianças, com mutirões de 100, 200,
até 300 pessoas e lá ficávamos diante da polícia, com todas as suas
metralhadoras e fuzis. Ela refletia e finalmente em muitos momentos recuava
porque pensava duas vezes em atirar numa criança.”
O empate
também envolvia bastante diálogo, já que muitos daqueles encarregados em
derrubar as árvores tinham sido seringueiros também. “Os trabalhadores sabiam que
não poderiam entrar em um conflito armado, porque perderiam a credibilidade e
seriam massacrados”, explica dom Moacyr Grechi, bispo local e um dos principais
aliados dos seringueiros na região. Aliás, todo o movimento tinha a influência
das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) da Igreja Católica. O próprio Chico
Mendes, em um momento extremo, morou durante seis meses na igreja de Xapuri.
“Os únicos em quem a polícia e os militares não podiam tocar éramos nós [os
religiosos] e isso foi fundamental naquele momento”, recorda Grechi. O fato é
que os empates dos trabalhadores fizeram com que muitas áreas que seriam
desmatadas não o fossem. Aquilo desagradou fazendeiros e feriu grandes
interesses, mas ainda assim era preciso formular uma alternativa que garantisse
a subsistência dos seringueiros e o desenvolvimento sustentável da floresta.
Liderança à prova e as reservas extrativistas
Na década de
80, o movimento dos trabalhadores rurais sofreria um duro golpe. No fim da
tarde de 21 de julho de 1980, Wilson Pinheiro recebeu um tiro na nuca dentro da
sede do sindicato de Brasiléia. Sem cerimônia, um pistoleiro entrou na casa
enquanto Wilson, desprevenido, assistia à novela com alguns companheiros.
Esse crime não
passaria em branco. Em visita ao Acre logo depois do assassinato, o então
presidente do PT, Luiz Inácio Lula da Silva, fundava com Chico Mendes o partido
no estado e aproveitava a ocasião para realizar um ato público contra o
assassinato de Pinheiro. “Está na hora da onça beber água”, disse. A frase, na boca
de Lula e também na de Chico Mendes, foi considerada um ato de incitação à
violência e de subversão, ainda mais depois que um grupo de seringueiros
executou o mandante do assassinato de Wilson Pinheiro.
“O curioso da
história é que depois que o fazendeiro foi assassinado elaborou-se um inquérito
policial de centenas de páginas, com a prisão temporária de 300 seringueiros”,
conta o advogado Genésio Natividade, que trabalhava para os seringueiros no
Acre por iniciativa do Instituto de Estudos Amazônicos, do Paraná. O clima de
acirramento e a sensação de impunidade eram dificuldades a mais que punham à
prova a liderança de Chico, considerado o sucessor de Pinheiro naquele momento.
Ali, teve que exercer toda sua capacidade de articulação e criatividade para
levar a luta além da execução de empates.
A resistência
dos seringueiros continuou, deslocando seu epicentro para Xapuri, onde Chico
Mendes era vereador, conta Gomercindo Rodrigues, um dos melhores amigos dele.
Sul-matogrossense, ele se mudou para o Acre em 1983 como funcionário da Empresa
de Assistência Técnica e Extensão Rural (Emater) e se tornou assessor do
movimento dos seringueiros, no qual atua até hoje, como advogado (agrônomo, ele
cursou Direito para defender os trabalhadores rurais após a morte de Chico).
Ricardo Gebrim
foi enviado ao Acre em 1988, recém-formado e a serviço da CUT, para estruturar
o Departamento Nacional de Trabalhadores Rurais (DNTR) e cuidar principalmente
das campanhas trabalhistas e sindicais dos trabalhadores rurais. Gebrim viu ali
um forte quadro. “O Chico transitava muito bem entre as correntes, era muito
bem articulado, muito inteligente, capaz, hábil e tinha muita percepção
política. Ele era um dos únicos que possuía uma formação ideológica de
esquerda, era uma referência para os outros ali”, descreve.
Ao mesmo tempo
que participava da vida sindical e trabalhava junto a movimentos sociais, Chico
atuava pela via institucional. Vereador eleito em 77 pelo MDB, mudou para o PT
em 1981, candidatando-se pelo partido ao cargo de deputado estadual em 1982 e
1986 (em chapa junto com Marina Silva, candidata a deputada federal) e ao cargo
de prefeito em 1988. Mesmo perdendo as eleições, tinha um bom trânsito dentro
de seu segmento e de sua categoria, buscando e conseguindo todo tipo de apoio
civil ao movimento, que avançava por diversos flancos. Um dos mais estratégicos
certamente era o Projeto Seringueiro, que trabalhava com a alfabetização e a
capacitação dos trabalhadores na área de contabilidade, para possibilitar a
estruturação de cooperativas e fortalecimento econômico da atividade
extrativista.
A facilidade
de diálogo que Chico tinha naturalmente fez com que ele preparasse o grande
salto para a organização local. A realização, em Brasília, do 1º Encontro
Nacional dos Seringueiros, em 1985, propiciou avanços como a formação do
Conselho Nacional da categoria, que passa a representar e articular os
trabalhadores agroextrativistas, incorporando definitivamente a defesa da
floresta como bandeira de luta.
A mesma
ocasião também marca os primeiros passos da aliança dos povos da floresta, com
a aproximação entre seringueiros e indígenas, antes inimigos históricos,
resultando na idéia que nortearia o movimento a partir de então: a batalha pela
instituição das reservas extrativistas. “Na preparação para o encontro
nacional, em uma das reuniões, um seringueiro colocou a questão: por que eles
não poderiam seguir um modelo de reserva semelhante ao dos indígenas? Daí
surgiu a idéia da reserva extrativista”, conta o governador do Acre Binho
Marques (PT), que conheceu Chico Mendes quando trabalhava como historiador no
Projeto Seringueiro.
A reserva
extrativista representava para os seringueiros do Acre a tradução da idéia de
reforma agrária para o contexto local. Do modo que a redistribuição fundiária
era discutida naquela época, com base no Estatuto da Terra, o modelo tornava-se
totalmente inadequado para os trabalhadores rurais acreanos. De novo é o
próprio Chico que explica o conceito. “A reserva extrativista é uma forma que
nós descobrimos de se fazer uso racional da terra. Você pode plantar culturas
permanentes, você pode continuar a extração da borracha, da castanha, de outros
produtos extrativistas, inclusive aí se inclui também a questão das árvores
medicinais e tanta riqueza que existe nessa mata. Pode-se usá-la e ela pode
servir como uma forma de industrialização e se tornar uma região com um grande
potencial econômico para o país.”
A forma de
explicar as vantagens da reserva extrativista chamou a atenção de
ambientalistas internacionais, convidados a participar do Encontro dos
Seringueiros. Entre eles, estava o cineasta inglês Adrian Cowell, que passou a
década de 80 praticamente inteira no Brasil, filmando em Rondônia a série de
filmes sobre a chamada “década da destruição” na Amazônia. Conhecido de Robert
Lamb, executivo do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma), o
cineasta envolvido com ecologia foi um dos que viu, na idéia das reservas
extrativistas, uma lâmpada se acender. “Era uma coisa muito simples – juntar a
reserva indígena e a atividade extrativista; era impressionante ninguém ter
pensado nisso antes”, avalia. A partir daí, quis filmar a proposta, tendo em
Chico Mendes a figura central de seu documentário, que seria mais um da sua
série.
Muito além do Acre
O documentário
demoraria a sair, mas mesmo assim a luta local dos trabalhadores rurais
alcançou uma dimensão internacional. Embora fosse praticamente ignorado pela
imprensa brasileira – com raras exceções –, Chico Mendes conseguiu articular
alianças importantes que asseguraram visibilidade para sua luta. É quase uma
unanimidade que a proximidade dele com a antropóloga Mary Alegretti facilitou
com que fossem feitas pontes com organizações, políticos e jornalistas estrangeiros.
A conexão
estabelecida com o também antropólogo Steve Schwartzman, por meio de Mary, foi
fundamental para diversos passos internacionais de Chico. Ainda mais no
contexto da segunda metade da década de 80, quando a questão ambiental estava
em ascensão e as práticas e bandeiras dos seringueiros já consistiam
naturalmente na defesa de atividades sustentáveis, embora o termo somente fosse
cunhado muito depois da primeira forte atuação dos trabalhadores para conter o
desmatamento no Acre.
“O Chico não
assimilou nenhum discurso ambientalista, o que aconteceu foi que os
ambientalistas vinham falar como tinha que ser na floresta e os seringueiros
diziam ‘nós já fazemos assim’. Então eles falavam ‘nossa, vocês são
ecologistas’, e nós respondíamos ‘do que é que vocês estão nos xingando?!’”,
lembra Gomercindo. “O que Chico assimilou foram os termos técnicos, que passou
a usar mais nos discursos porque percebia que essa era uma forma de atrair mais
e mais apoios e parcerias para o movimento”, completa o advogado.
Foi utilizando
como base a argumentação ambientalista que Chico Mendes convenceu o Banco
Interamericano de Desenvolvimento (BID) a suspender o financiamento da
construção do trecho da BR-364, que ligava Porto Velho (RO) a Rio Branco.
Idealizada por Adrian Cowell e Steve Schwartzman, a ida de Chico Mendes à
reunião do banco em Miami, em 1987, tinha como meta fazer chegar aos banqueiros
um relato local de que as regras de controle ambiental para estabelecimento da
estrada não estavam sendo respeitadas. O fato repercutiu, mas ainda mais que
isso ganhou dimensão o fato de o Pnuma escolher o nome de Chico Mendes –
indicado pelo cineasta inglês – para ser o premiado ao “Global 500” daquele
ano, uma espécie de Nobel da ONU promovido na época. “Naturalmente, o posto de
vencedor desse prêmio aguçou o interesse de muitos jornalistas na Europa, onde
Chico Mendes ganhou bastante espaço de mídia”, relata Cowell.
De volta ao Brasil e ao Acre
No Brasil,
como dizia Chico Mendes citando um bordão de esquerda, “a luta continuava”. E,
no Acre, ela trazia mais desafios. Com a paralisação que ele conseguiu nas
obras da rodovia, os especuladores acreanos estavam furiosos e faziam ecoar nos
meios de comunicação locais que o líder seringueiro era responsável pelo
“atraso” na região. Sua imagem era construída como a de um inimigo público,
sendo visto como um obstáculo para os fazendeiros. E obstáculos, para alguns
deles, não foram feitos para serem contornados, mas simplesmente eliminados.
As práticas
contra os trabalhadores rurais já eram tradicionalmente violentas – o Acre
pouco mudara desde antes do assassinato do pai de Wilson Pinheiro, dele próprio
e de diversos outros integrantes dos sindicatos e movimentos dos trabalhadores
rurais, que passaram a ser um alvo mais constante em 1988. Só naquele ano,
houve um atentado de pistoleiros contra um acampamento de protesto na sede do
Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal (IBDF, o atual Ibama), em que
dois jovens foram feridos, um deles tendo ficado tetraplégico; uma morte de um
líder mais religioso que sindical, Ivair Higino, em junho; e, em 11 de
setembro, José Ribeiro, que havia saído de casa à noite para comprar algum
produto de urgência para sua casa, também perdeu a vida. Para alguns
integrantes dos movimentos, os crescentes ataques eram avisos de que a intenção
era abater a liderança e todos se preocupavam com Chico Mendes.
“No começo de
dezembro, quando o Chico estava no Rio, o Genésio conversou comigo e a idéia
era fazermos de tudo para segurar o Chico por lá”, conta Gomercindo. “A gente
sabia que, no fim do ano, só ficava o terceiro escalão das autoridades e que o
tempo poderia ser muito propício para a consumação do assassinato”, lembra o advogado
Genésio Natividade.
No entanto,
ninguém conseguia impedir Chico Mendes de voltar e ficar no Acre. Um pouco pela
obrigação de resistir, da esperança de que poderia se esquivar de atentados
que, sabia, estavam certos (já havia escapado em outras seis oportunidades); um
pouco pela saudade de casa, ele que era um homem que viajava muito mais do que
gostaria e que, no fundo, não queria deixar sozinhos a esposa, Ilzamar, e os
dois filhos pequenos, Elenira e Sandino [os nomes dos dois filhos mais novos de
Chico Mendes eram intencionalmente os mesmos de guerrilheiros que Chico
admirava – Elenira, guerrilheira do Araguaia, e Sandino, revolucionário
nicaragüense.], ele fazia questão de estar em Xapuri a partir do seu
aniversário de 44 anos, dia 15 de dezembro, até o Natal. “Ele dizia que depois
do Natal ele topava sair do Acre”, conta Genésio.
No dia 22 de
dezembro, com a família reunida para jantar, Chico resolveu tomar um banho
antes de comer. Já estava escurecendo e, embora ele tivesse dois homens da
polícia fazendo sua segurança particular, por causa das constantes ameaças que
vinha sofrendo, nenhum deles se deu o trabalho de fazer uma diligência para se
prevenir de tocaias, apesar de o próprio Chico ter constatado: “está escuro, os
caras podem estar me atocaiando…”. Sem esperar atitude dos seguranças, resolveu
ele mesmo pegar uma lanterna para sair até o banheiro, que era do lado de fora
da casa. A lanterna não ajudou, e Chico foi pego exatamente assim, por um
assassino preparando tocaia escondido entre as árvores, que disparou o tiro de
espingarda na direção exata de seu coração. De acordo com depoimentos da viúva
Ilzamar, Chico Mendes se voltou para dentro de casa, com o peito sangrando e as
mãos na cabeça e, caminhando em direção ao quarto, ainda disse “puxa, os caras
me acertaram”.
Um vizinho o
socorreu e algumas pessoas se mobilizaram para arrumar um carro e levá-lo ao
hospital. Em vão. Ele já estava morto. Enquanto isso, os seguranças haviam
corrido para o lado contrário de onde tinha vindo o tiro e os policiais da
delegacia que ficava a 50 metros da casa de Chico Mendes não se mexiam, como
conta Gomercindo, que presenciou a comoção de parte das pessoas logo depois do
assassinato.
Efeito reverso
Embora Chico Mendes tivesse avaliado que, enfim,
seus inimigos haviam vencido, o que se viu a partir do dia seguinte foi o
inverso da previsão feita em sua última entrevista, dada ao The New York Times
e ao Jornal do Brasil (ver matéria aqui). Ali ele
raciocinava que só seria útil à Amazônia vivo, para articular as ações
necessárias para o movimento. Como mártir, ele não resolveria nada. Queria era
viver, apesar de saber que estava marcado para morrer.
Amigos de
outras regiões do Brasil e do exterior, jornalistas de toda parte,
ambientalistas e diversas pessoas, envolvidas com qualquer uma das bandeiras de
Chico Mendes, foram para Xapuri em pleno feriado de Natal. Na missa de corpo
presente e no enterro do líder, milhares de pessoas davam a prévia de que
aquela morte, em especial, não passaria batida. A memória de Chico Mendes
passaria a estar constantemente presente em todo o mundo.
Hoje, as idéias de Chico vivem, principalmente no
Acre, que seu legado transformou em um lugar totalmente diferente do que era à
época em que foi assassinado (ver matéria aqui). E,
embora sua causa esteja essencialmente ligada à questão ambiental, sua herança
é bem mais ampla. Não era apenas “verde”, como podem querer fazer crer hoje,
sonhava um sonho muito maior. “O Chico era um quadro político realmente
diferenciado, uma figura comparável à do Lula”, avalia Ricardo Gebrim.
Vivo, hoje
provavelmente ocuparia uma posição de destaque dentro do espectro da esquerda
brasileira. “O Chico era acima de tudo um socialista, do fundo do coração”,
atesta Gomercindo Rodrigues. Foi na casa do amigo, em 1988, que Chico deixou um
bilhete, com a data fictícia de 6 de setembro de 2120, no qual imaginava uma
futura revolução socialista mundial, que então completaria o seu primeiro
centenário. E registrava: “aqui fica somente a lembrança de um triste passado
de dor, sofrimento e morte”. Esse passado ainda não está superado, mas o
caminho hoje é trilhado graças, em grande parte, à vida de Chico Mendes.
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