"É noite alta e eu ainda não preguei os
olhos. Não vai. O sono não engata. Amanhã cedo tem trabalho que segue até
tarde, como todos os outros dias da vida. Eu preciso dormir, mas é impossível e
eu sei por quê. É que o meu coração está pesado e barulhento.
Agora há pouco, meu filho de sete anos me fez
algo que eu entendi como incabível. Ele me disse “cale a boca” num instante de
irritação infantil, egoísta e imaturo como geralmente são as crianças. Eu
dei-lhe uma bronca daquelas, gritada, irrefletida, e ele me pediu desculpas,
como em geral fazem os adultos de boa vontade. Mas eu não consegui perdoá-lo
ali, na hora. Nem ao meu filho, a quem eu disse “não”, nem a mim mesmo eu fui
capaz de oferecer um simples e providencial perdão. Estava encerrado o nosso
fim de semana feliz.
No tempo combinado, levei-o de volta à casa da mãe dele
sem olhar-lhe nos olhos, sem beijo e nem abraço. Sem o “eu te amo”, o “tchau,
até amanhã, meu filho”, de sempre. Do jeito mais infantil, egoísta e imaturo
possível para um homem de quarenta anos.
Agora estou aqui, insone, doente, sofrendo a falta dele. Consumido
de medo e culpa, efeitos terríveis da minha incapacidade para o perdão. E se eu
morrer agora, antes de vê-lo de novo? E se me faltar
a oportunidade de dizer a ele de perto, olhando-o nos olhos, que eu o
perdoo, sim? E se amanhã eu não puder explicar-lhe com calma e amor e cuidado
que fiquei chateado porque não se manda o papai calar a boca, mas que o papai
ainda é o mesmo que o pega de segunda a sexta na escola, o espera comer a
salada em nosso almoço de todo dia e o ama mais que tudo na vida?
E se eu disser e ele não acreditar em nada
disso?
Se qualquer dessas coisas acontecer, a culpa
será minha. Obra da minha própria e indiscutível incapacidade de perdoar,
esquecer e tocar em frente.
De todas as durezas da vida, é certo que entre
as maiores e mais dolorosas vive a nossa pouca habilidade para o perdão. Meu
Deus! Como é duro perdoar! Aos outros e a nós mesmos, o perdão é nosso mais
caro e raro trabalho.
Você e eu e todos nós somos enormes depósitos de mágoas.
Nossas casas internas estão abarrotadas delas. Em gavetas
superlotadas, nos porões, nos sótãos, debaixo das camas, esquecidas em caixas
de papelão fechadas desde uma velha mudança, entupindo passagens em quartos mal
usados, dificultando o fluxo do ar e da luz e da vida, lá estão velhos rancores
e culpas, chateações e ressentimentos endurecidos com o tempo, como portas
emperradas trancando a vida do lado de dentro. Esperando nosso simples e tão
difícil perdão.
Explodi numa bronca desmedida em meu filho de
sete anos, fui incapaz de desculpá-lo e explicar-lhe os motivos da minha ira
porque tenho o coração tumultuado por passagens mal resolvidas, dores passadas,
preocupações recorrentes, irritações corriqueiras e outros entulhos. Lixo puro
e simples, mato, erva daninha se arraigando no quintal, firme no propósito de
sabotar nossas plantas. Ódio empurrando o amor barranco abaixo.
Tudo isso porque dar e receber perdão
honestamente, com a verdade das crianças, é tão difícil quanto as decisões mais
complexas da vida. Aquelas que você e eu julgamos definitivas e que depois o
tempo nos joga na cara o quanto são banais e corriqueiras e ridículas como
roupas, móveis, objetos, arquivos e recibos sem uso que relutamos em passar
adiante, mas que quando se vão deixam os bolsos, as malas, os computadores e a
vida tanto mais leves. Perdoar deve ser isso mesmo, né? Decidir seguir em
frente com a bagagem reduzida.
Hoje eu não consegui. Não perdoei a má-criação
de meu filho na hora certa e não perdoo a mim mesmo por isso. Minha bagagem
segue pesada como meu coração. Acho que não vou morrer antes de ver meu menino
de novo. Não desta vez. Mas é certo que morri um pouquinho agora, insone,
triste, lembrando seus olhinhos de perdão à espera da minha compreensão que não
veio.
Então amanheceu. É outro dia. Tempo de tentar
de novo. Perdão, meu pequenino herói. Uma hora, com todo o amor que nos cabe,
este seu velho pai há de aprender." André J. Gomes, Revista Bula
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Olá queridos leitores, bem vindo a pagina do Blog Imperial. Seu comentário é de extrema importância para nosso crescimento.
Marcos Imperial