| Foto: Ramiro Furquim/Sul21 Conceição lemes Viomundo.
Leonardo Boff é um dos mais brilhantes e respeitados intelectuais
do Brasil. Teólogo, escritor e professor universitário, expoente da Teologia da
Libertação. Ficou conhecido pela sua história de defesa intransigente das
causas sociais. Atualmente dedica-se sobretudo às questões ambientais.
Ele conhece Marina Silva, candidata do PSB à Presidência da
República, desde os tempos em que ela atuava no Acre e estava muito ligada à
Teologia da Libertação. Acompanhou toda a sua trajetória.
Em 2010, chegou a sonhar com uma representante dos povos da
floresta, dos caboclos, dos ribeirinhos, dos indígenas, dos peões vivendo em
situação análoga à escravidão, chegar a presidente do Brasil. Hoje, não.
“Está ficando cada vez mais claro que Marina tem um projeto pessoal
de ser presidente, custe o que custar”, observa Boff em entrevista exclusiva ao
Viomundo.
Para Boff, Marina acolheu plenamente o receituário neoliberal.
“Ela o diz com certo orgulho inconsciente, sem dar-se conta do que
isso realmente significa: mercado livre, redução dos gastos públicos (menos
médicos, menos professores, menos agentes sociais etc), flutuação do dólar e
contenção da inflação com a eventual alta de juros”, alerta. “Como
consequência, arrocho salarial, desemprego, fome nas famílias pobres, mortes
evitáveis. É o pior que nos poderia acontecer. Tudo isso vem sob o nome
genérico de ‘austeridade fiscal’ que está afundando as economias da zona do
Euro”.
Sobre a autonomia do Banco Central prevista no programa de Marina,
Boff detona: “Acho uma falta total de brasilidade. Significa renunciar à
soberania monetária do país e entregá-la ao jogo do mercado, dos bancos e do
sistema financeiro capitalista nacional e transnacional. A forma como o capital
se impõe é manter sob seu controle os Bancos Centrais dos países”.
Veja a íntegra da nossa entrevista. Nela, Leonardo Boff aborda o
recuo de Marina em relação à criminalização da homofobia, a sua trajetória
religiosa, a influência de Silas Malafaia, Neca Setúbal (Banco Itaú), Guilherme
Leal (Natura) e do economista neoliberal Eduardo Gianetti da Fonseca. Também a
autonomia formal do Banco Central e o risco de ela sofrer impeachment.
Viomundo — Na última sexta-feira, Marina lançou o seu programa de
governo, que previa o reconhecimento da união homoafetiva e a criminalização da
homofobia. Bastou o pastor Malafaia tuitar quatro frases para ela voltar atrás.
O que achou dessa postura? É cristão não criminalizar a homofobia, que
frequentemente provoca assassinatos?
Leonardo Boff — Está ficando cada vez mais claro que Marina tem um
projeto pessoal de ser presidente, custe o que custar. Numa ocasião, ela chegou
a declarar que um dos objetivos desta eleição é tirar o PT do poder, o que faz
supor mágoas não digeridas contra o PT que ajudou a fundar.
O Malafaia, líder da Igreja Assembleia de Deus à qual Marina
pertence, é o seu Papa. O Papa falou, ela, fundamentalisticamente obedece, pois
vê nisso a vontade de Deus. E, aí, muda de opinião. Creio que não o faz por
oportunismo político, mas por obediência à autoridade religiosa, o que acho, no
regime democrático, injustificável.
Um presidente deve obediência à Constituição e ao povo que a
elegeu e não a uma autoridade exterior à sociedade.
Viomundo — Qual o risco para a democracia brasileira de alguém na
presidência estar submissa a visões tão retrógradas em pleno século XXI,
ignorando os avanços, as modernidades?
Leonardo Boff — Um fundamentalista é um dos atores políticos menos
indicado para exercer o cargo da responsabilidade de um presidente. Este deve
tomar decisões dentro dos parâmetros constitucionais, da democracia e de um
estado laico e pluralista. Este tolera todas as expressões religiosas, não opta
por nenhuma, embora reconheça o valor delas para a qualidade ética e espiritual
da vida em sociedade.
Se um presidente obedece mais aos preceitos de sua religião do que
aos da Constituição, fere a democracia e entra em conflito permanente com
outros até de sua base de sustentação, pois os preceitos de uma religião
particular não podem prevalecer sobre a totalidade da sociedade.
A seguir estritamente nesta linha, pode acontecer um impeachment à
Marina, por inabilidade de coordenar as tensões políticas e gerenciar conflitos
sempre presentes em sociedades abertas.
Viomundo — Lá atrás Marina Silva esteve ligada à Teologia da
Libertação. Atualmente, é da Assembleia de Deus. O que o senhor diria dessa
trajetória religiosa? O que representa essa guinada para o conservadorismo
exacerbado?
Leonardo Boff – Respeito a opção religiosa de Marina bem como de
qualquer pessoa. Eu a conheço do Acre e ela participava dos cursos que meu
irmão teólogo Frei Clodovis (trabalhava 6 meses na PUC do Rio e 6 meses na
igreja do Acre) e eu dávamos sobre Fé e Política e sobre Teologia da Libertação.
Aqui se falava da opção pelos pobres contra a pobreza, a urgência
de se pensar e criar um outro tipo de sociedade e de país, cujos principais
protagonistas seriam as grandes maiorias pobres junto com seus aliados, vindos
de outras classes sociais. Marina era uma liderança reconhecida e amada por
toda a Igreja.
Depois, ao deixar o Acre, por razões pessoais, converteu-se à
Igreja Assembleia de Deus. Esta se caracteriza por um cristianismo
fundamentalista, pietista e afastado das causas da pobreza e da opressão do
povo. Sua pregação é a Bíblia, preferentemente o Antigo Testamento, com uma
leitura totalmente descontextualizada daquele tempo e do nosso tempo. Como
fundamentalista é uma leitura literalista, no estilo dos muçulmanos.
Politicamente tem consequências graves: Marina pôs o foco no
pietismo e no fundamentalismo, na vida espiritual descolada da história
presente e quase não fala mais da opção pelos pobres e da libertação. Pelo
menos não é este o foco de seu discurso.
A libertação para ela é espiritual, do pecado e das perversões do
mundo. Com esse pensamento é fácil ser capturada pelo sistema vigente de
mercado, da macroeconomia neoliberal e especulativa.
Isso é inegável, pois seus assessores são desse campo: a herdeira
do Banco Itaú Maria Alice (Neca), Guilherme Leal da Natura e o economista
neoliberal Eduardo Gianetti da Fonseca. Os pobres perderam uma aliada e os
opulentos ganharam uma legitimadora.
E eu que em 2010 sonhava com uma representante dos povos da
floresta, dos caboclos, dos ribeirinhos, dos indígenas, dos peões vivendo em
situação análoga à escravidão, dos operários explorados das grandes fábricas,
dos invisíveis, alguém que viria dos fundos da maior floresta úmida do mundo, a
Amazônia, chegar a ser presidente de um dos maiores países do mundo, o Brasil?!
Esse sonho foi uma ilusão que faz doer até os dias de hoje. Pelo menos vale
como um sonho que nunca morre!
Viomundo — O programa de Marina prevê autonomia ao Banco Central.
O que acha dessa medida?
Leonardo Boff — Eu me pergunto, autonomia de quem e para quem?
Acho uma falta total de brasilidade. Significa renunciar à
soberania monetária do país e entregá-la ao jogo do mercado, dos bancos e do
sistema financeiro capitalista nacional e transnacional. Um presidente/a é
eleito para governar seu povo e um dos instrumentos principais é o controle
monetário que assim lhe é subtraído. Isso é absolutamente antidemocrático e
comporta submissão à tirania das finanças que são cada vez mais vorazes, pondo
países inteiros à falência como é o caso da Grécia, da Espanha, da Itália, de
Portugal e outros.
Viomundo — Essa medida expressa a influência de Neca Setúbal,
herdeira do Itaú, no seu futuro governo?
Leonardo Boff — Quem controla a economia controla o país, ainda
mais que vivemos numa sociedade de “Grande Transformação” denunciada pelo
economista húngaro-americano Karl Polaniy ainda em 1944 quando, como diz,
passamos de uma sociedade com mercado para uma sociedade só de mercado. Então
tudo vira mercadoria, inclusive as coisas mais sagradas como água, alimentos,
órgãos humanos.
A forma como o capital se impõe é manter sob seu controle os
Bancos Centrais dos países. A partir desse controle, estabelecem os níveis dos
juros, a meta da inflação, a flutuação do dólar e a porcentagem do superávit
primário (aquela quantia tirada dos impostos e reservada para pagar os
rentistas, aqueles que emprestaram dinheiro ao governo).
Os bancos jogam um papel decisivo, pois é através deles que se
fazem os repasses dos empréstimos ao governo e se cobram juros pelos serviços.
Quanto maior for o superávit primário a alíquota Selic mais lucram. Pode ser
que a citada Neca Setúbal tenha tido influência para que a candidata Marina
acreditasse neste receituário, velho, antipopular, danoso para as grandes
maiorias, mas altamente benéfico para o sistema macroeconômico vigente.
Viomundo — As avaliações feitas até agora mostram que o programa
econômico de Marina é o mesmo de Aécio Neves, candidato do PSDB à Presidência.
São neoliberais. O que representaria para o Brasil o retorno a esse modelo? O
senhor acha que, se eleita, o governo Marina teria conotações neoliberais?
Leonardo Boff — Marina acolheu plenamente o receituário
neoliberal. Ela o diz com certo orgulho inconsciente, sem dar-se conta do que
isso realmente significa: mercado livre, redução dos gastos públicos (menos
médicos, menos professores, menos agentes sociais etc), flutuação do dólar e
contenção da inflação com a eventual alta de juros.
Como consequência, arrocho salarial, desemprego, fome nas famílias
pobres, mortes evitáveis. É o pior que nos poderia acontecer. Tudo isso vem sob
o nome genérico de “austeridade fiscal” ,que está afundando as economias da
zona do Euro e não deram certo em lugar nenhum do mundo, se olharmos a política
econômica a partir da maioria da população. Dão certo para os ricos que ficam
cada vez mas ricos, como é o caso dos EUA onde 1% da população ganha o equivalente
ao que ganham 99% das pessoas. Hoje os EUA são um dos países mais desiguais do
mundo.
Viomundo – Foi amplamente divulgado que Marina consulta a Bíblia
antes de tomar decisões complexas. Esta visão criacionista do mundo é
compatível com um mundo laico?
Leonardo Boff — O que Marina pratica é o fundamentalismo. Este é
uma patologia de muitas religiões, inclusive de grupos católicos. O
fundamentalismo não é uma doutrina. É uma maneira de entender a doutrina: a
minha é a única verdadeira e as demais estão erradas e como tais não têm
direito nenhum.
Graças a Deus que isso fica apenas no plano das ideias. Mas
facilmente pode passar para o plano da prática. E, aí, se vê evangélicos
fundamentalistas invadirem centros de umbanda ou do candomblé e destruírem tudo
ou fazerem exorcismos e espalharem sal para todo canto. E no Oriente Médio
fazem-se guerras entre fundamentalistas de tendências diferentes com grande
eliminação de vidas humanas como o faz atualmente o recém-criado Estado
Islâmico. Este pratica limpeza étnica e mata todo mundo de outras etnias ou
crenças diferentes das dele.
Marina não chega a tanto. Mas possui essa mentalidade
teologicamente errônea e maléfica. No fundo, possui um conceito fúnebre de
Deus. Não é um Deus vivo que fala pela história e pelos seres humanos, mas
falou outrora, no passado, deixou um livro, como se ele nos dispensasse de
pensar, de buscar caminhos bons para todos.
O primeiro livro que Deus escreveu são a criação e a natureza.
Elas estão cheias de lições. Criou a inteligência humana para captarmos as
mensagens da natureza e inventarmos soluções para nossos problemas.
A Bíblia não é um receituário de soluções ou um feixe de verdades
fixadas, mas uma fonte de inspiração para decidirmos pelos melhores caminhos.
Ela não foi feita para encobrir a realidade, mas para iluminá-la. Se um
fundamentalista seguisse ao pé da letra o que está escrito no livro Levítico
20,13 cometeria um crime e iria para a cadeia, pois aí se diz textualmente: “Se
um homem dormir com outro, como se fosse com mulher, ambos cometem grave
perversidade e serão punidos com a morte: são réus de morte”.
Viomundo — Marina fala em governar com os melhores. É possível
promover inclusão social, manter políticas que favorecem os mais pobres com uma
política econômica neoliberal?
Leonardo Boff — Marina parece que não conhece a realidade social
na qual há conflitos de interesses, diversidade de opções políticas e
ideológicas, algumas que se opõem completamente às outras.
Lendo o programa de governo do PSB de Marina parece que fazemos um
passeio ao jardim do Éden. Tudo é harmonioso, sem conflitos, tudo se ordena
para o bem do povo. Se entre os melhores estiver um político, para aceitar seu
convite, deverá abandonar seu partido e com isso, segundo a atual legislação,
perderia o mandato.
Ela necessariamente, se quiser governar, deverá fazer alianças,
pois temos um presidencialismo de coalizão. Se fizer aliança com o PMDB deverá
engolir o Sarney, o Renan Calheiros e outros exorcizados por Marina. Collor
tentou governar com base parlamentar exígua e sofreu um impeachment.
Viomundo — Marina é preparada para presidir um país tão complexo
como o Brasil?
Leonardo Boff — Eu pessoalmente estimo sua inteireza pessoal, sua
visão espiritualista (abstraindo o fundamentalismo), sua busca de ética em tudo
o que faz. Estimo a pessoa, mas questiono o ator político. Acho que não tem a
inteligência política para fazer as alianças certas. O presidente deve ser uma
pessoa de síntese, capaz de equilibrar os interesses e resolver conflitos para
que não sejam danosos e chegar a soluções de ganha-ganha. Para isso precisa-se
de habilidade, coisa que em Lula sobrava. Marina, por causa de seu
fundamentalismo, não é uma pessoa de síntese, mas antes de divisão.
Viomundo — A preservação efetiva do meio ambiente é compatível com
o capitalismo selvagem dos neoliberais?
Leonardo Boff — Entre capitalismo e ecologia há uma contradição
direta e fundamental. O capitalismo quer acumular o mais que pode sem qualquer
consideração dos bens e serviços limitados da Terra e da exploração das
pessoas. Onde ele chega, cria duas injustiças: a social, gerando muita pobreza
de um lado e grande riqueza do outro; e uma injustiça ecológica ao devastar
ecossistemas e inteiras florestas úmidas.
Marina fala de sustentabilidade, o que é correto. Mas deve ficar
claro que a sustentabilidade só é possível a partir de outro paradigma que
inclui a sustentabilidade ambiental, político-social, mental e integral
(envolvendo nossa relação com as energias de todo o universo).
Portanto, estamos diante de uma nova relação para com a natureza e
a Terra, onde as medidas econômicas preconizadas por Marina contradizem esta
visão. Temos que produzir, sim, para atender demandas humanas, mas produzir
respeitando os limites de cada ecossistema, as leis da natureza e repondo
aquilo que temos demasiadamente retirado dela.
Marina quer a produção sustentável, mas mantém a dominação do ser
humano sobre a natureza. Este está dentro da natureza, é parte dela e
responsável por sua conservação e reprodução, seja como valor em si mesmo, seja
como matriz que atende nossas necessidades e das futuras gerações.
Ocorre que atualmente o sistema está destruindo as bases
físico-químicas que sustentam a vida. Por isso, ele é perigoso e pode nos levar
a uma grande catástrofe. E com certeza os que mais sofrerão, serão aqueles que
sempre foram mais explorados e excluídos do sistema. Esta injustiça histórica
nós não podemos aceitar e repetir.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Olá queridos leitores, bem vindo a pagina do Blog Imperial. Seu comentário é de extrema importância para nosso crescimento.
Marcos Imperial