Publicado por Jean Wyllys, no Facebook
"A iconografia cristã católica (ou seja, as representações dos
“santos” e “mártires” reconhecidos pela Igreja Católica ao longo de sua
existência) e as narrativas que lhe deram origem e lhes sustentam (a Bíblia e a
hagiografia) vêm servindo de inspiração e material para as artes laicas desde a
Independência Americana (1776) e a Revolução Francesa (1789) – eventos
marcantes da emergência do que chamamos de modernidade ocidental, pautada não
só pela separação entre Estado e religião (transformando esta última num
direito individual, em vez de um dever público) mas pautada também nas
liberdades civis – até os dias de hoje.
Não apenas artistas das mais variadas expressões se apropriaram desse
acervo – seja para questionar os valores morais veiculados por essa iconografia
e narrativas, expondo contradições e hipocrisias da instituição que lhes
sustenta (não é segredo pra qualquer pessoa com um mínimo de conhecimento da
nossa história que a Igreja Católica empreendeu um morticínio ao longo dos
séculos para se impor como religião a diferentes nações e teve participação
direta na disseminação do antissemitismo, na escravidão de negros africanos e
na aculturação violenta dos povos ameríndios.
Isso sem falar no envolvimento
de membros do alto e do baixo cleros em exploração sexual de crianças e
adolescentes e venda de indulgências), seja por pura identificação estética (as
cores e o erotismo sadomasoquista evidente em boa parte da iconografia cristã,
sobretudo naquela produzida por artistas homossexuais do Barroco e da
Renascença, sempre fascinaram cineastas, fotógrafos e cenógrafos) – como também
a indústria cultural e a publicidade se apropriaram desse acervo para venderem
seus produtos.
Das charges e literaturas anticlericais do século XVIII à capa da
revista Placar com ojogador Neymar crucificado, passando pelo “Evangelho
segundo Jesus Cristo”, de José Saramago, pelo filme “A última
tentação de Cristo”, de Martin Scorsese, e pelo Cristo negro do videoclipe de
“Like a prayer”, de Madonna, a produção cultural secular há tempos se apropria
da iconografia e narrativas cristãs para mostrar o quanto as igrejas, ao longo
desses séculos, comportam-se ora como promotoras de vida ora como máquinas de
morte e sofrimento.
E a laicidade dos estados modernos e democráticos de direito impediu que
essas igrejas condenassem ao suplício e/ou à morte na fogueira – como o fizeram
até a emergência da modernidade cultural – os artistas e intelectuais que
expõem suas contradições e fraquezas em obras artísticas.
Se é assim, então por que essa celeuma toda em torno da apropriação da
iconografia da crucificação de Jesus feita por uma artista transexual na Parada
LGBT de São Paulo? Por que essa apropriação merece mais repúdio e “indignação”
do que, por exemplo, as capas de Veja e Placar ou do que o Cristo alegórico de
Joãozinho Trinta no Carnaval do Rio ou mesmo do que as esquetes do humorístico
Porta dos Fundos no YouTube?
Ora, porque se trata de uma representação feita por um membro da
comunidade LGBT! A celeuma – iniciada e estimulada por lideranças
político-religiosas oportunistas, demagógicas e intelectualmente desonestas –
tem, portanto, o objetivo claro de difamar lésbicas, gays, bissexuais e
transexuais por meio da manipulação dos preconceitos anti-homossexuais
históricos ainda arraigados no coração e na mente da maioria da população.
Por que esses pastores e deputados-pastores e seu rebanho de ovelhas
obedientes que não pensam não atacaram Neymar? Ora, pelo mesmo motivo que eles
decidiram boicotar O Boticário por causa de uma campanha em favor da
diversidade de relações afetivas, mas silenciaram em relação às empresas
acusadas de manterem trabalhadores em situação análoga à escravidão e de crimes
ambientais! Ou seja, a preocupação dessa gente não é com valores
verdadeiramente morais e éticos, mas tão somente com a perseguição sistemática
de uma comunidade que é estratégica em seu avanço sobre as pessoas e a política
por meio da exploração comercial da fé e dos medos que rende fortunas que, de
tão obscenas, já foram parar na capa da Forbes!
Essa manipulação de preconceitos por parte dessas lideranças religiosas
só é possível graças à estupidez contagiosa que vem tomando conta das pessoas
em suas relações sociais dentro e fora da internet e que elas, as
tais lideranças, ajudaram a espalhar. Ela só é possível porque o Estado
brasileiro não garantiu à maioria da população, por meio do sistema de ensino,
uma educação de qualidade que não só lhe trouxesse a capacidade de pensar
e ler criticamente o mundo, o que lhe permitiria se defender dos
discursos enganosos e manipuladores, mas também uma ampliação do repertório
cultural.
Se mais de 70% da população brasileira não lê livros, como esperar que
essas pessoas reconheçam e interpretem, por exemplo, a expressão artística do
Teatro Oficina, com sua trilogia sobre os Mistérios Gozosos, Dolorosos e
Gloriosos, ou as obras iconoclastas do artista plástico argentino León Ferrari?
Ou mesmo a própria iconografia cristã, que esconde sentidos que até mesmo a
leitura de um best-seller como “O código Da Vinci”, de Dan Brown, é capaz de
apontar?
Na falta de um repertório cultural mais amplo e da capacidade de pensar
criticamente e de discernir; contaminadas pela estupidez disseminada na
internet por fascistas apedeutas e vigaristas ocupados na exploração comercial
da fé alheia; e interpeladas em seus preconceitos anti-homossexuais históricos
e arraigados, as pessoas só poderiam mesmo embarcar nessa celeuma homofóbica,
escrevendo seus insultos contra LGBTs e suas declarações de apoio aos canalhas
manipuladores – sim, porque, na cabeça dessa gente, é mais grave uma recriação
artística da crucificação de Cristo do que o uso do nome de Jesus para vender
falsos milagres e vassouras ungidas e para pedir a senha do cartão de crédito
de fiéis.
O reflexo eleitoral dessa ausência de pensamento crítico e pobreza de
repertório cultural por parte de parcela expressiva da população é evidente na
Câmara Federal, onde deputados ignorantes, preconceituosos e autoritários
rebaixam o debate político e, evocando suas votações expressivas nas últimas
eleições, querem impor, aos demais parlamentares e aos intelectuais convidados
para audiências públicas, sua estupidez constrangedora.
Não me espanta que muita gente caia nessa celeuma já que foi também
capaz de eleger deputados que chamam o urucum de “tinta do diabo” e negam que
haja racismo no Brasil – Isso para não falar dos que negam a evolução das
espécies e dos que querem que a Constituição diga que “todo poder emana de
Deus” e não do povo!
Não vou aqui interpretar a performance da artista transexual porque seus
sentidos me parecem óbvios demais: se Jesus foi marginal em sua época e, por
isso, condenado à pena de morte por crucificação, nada mais pertinente do que
usar esseepisódio como metáfora da pena de morte a que estão condenadas as
transexuais e travestis no Brasil, marginais da contemporaneidade.
Até mesmo muitos gays de classe média e média-alta foram incapazes de
extrair sentido tão óbvio da performance artística da transexual, o que mostra
que as viagens ao exterior, a música eletrônica, as drogas sintéticas
consumidas nas baladas, as calças da Diesel e as cuecas da Calvin Klein não os
tornam imunes à epidemia de estupidez nem à homofobia internalizada, ao
contrário! Leitura, informação, estudo, artes vivas e canja de galinha não
fazem mal a ninguém e saem mais em conta que os óculos Gucci e a rave da Skol.
E da próxima vez que forem escrever “Je suis Charlie” em seus perfis no
Facebook, lembrem-se de que aqui nós também gozamos da liberdade constitucional
de criticar através de expressões artísticas os dogmas e contradições das
religiões – e isso está longe de se confundir com intolerância religiosa!
Intolerância religiosa é pastor mandar seus fiéis invadirem terreiros de
Candomblé para depredar seus orixás ou evangélico fanático urinar sobre a
imagem de Nossa Senhora.
Uma sociedade verdadeiramente democrática, se quiser continuar assim, ao
mesmo tempo que garanta a liberdade de crença a todos os que creem, deverá
cuidar para que quaisquer religiões (em especial as cristãs) e seus porta-vozes
não extrapolem a esfera que lhes compete – que é a esfera privada – e deverá
impedir que se infiltrem ainda mais no Estado e na esfera pública, tentando
cercear, por meio de falácias, manipulações, difamações e desonestidade
intelectual, as liberdades civis de artistas e pessoas não crentes."
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Olá queridos leitores, bem vindo a pagina do Blog Imperial. Seu comentário é de extrema importância para nosso crescimento.
Marcos Imperial