A coordenadora do programa de proteção à criança do Unicef no Brasil, a angolana Casimira Benge.
Para a coordenadora do programa de
proteção à criança do Unicef, jogar menores em prisões de adultos geraria
jovens ainda mais violentos e poderia associá-los a alguma facção.
Vinte e cinco anos após a criação do Estatuto da Criança e do
Adolescente, uma comissão especial da Câmara dos Deputados deu aval à redução
da maioridade penal de 18 para 16 anos em casos de crimes
violentos. A aprovação da emenda à Constituição foi na última quarta-feira
17, em uma sessão fechada ao público - para escapar de protestos.
Padrinho do projeto, o presidente da Câmara, Eduardo Cunha, promete submeter o
tema a votação em 30 de junho.
Pela proposta, adolescentes com 16 anos ou mais podem ser punidos como
adultos por crimes hediondos, estupro e latrocínio incluídos, ou equiparados, a
exemplo do tráfico de drogas e da tortura. Também podem ser encarcerados em
penitenciárias comuns por lesão corporal grave, homicídio doloso e roubo
qualificado, quando há uso de arma, participação de duas ou mais pessoas ou restrição
da liberdade da vítima, por exemplo. Antes de seguir para o Senado, o projeto
precisa do apoio de 60% dos deputados, em dois turnos de votação.
Em diversas ocasiões, o Unicef e o Escritório das Nações Unidas sobre
Drogas e Crime manifestaram oposição à redução da maioridade. “Não faz sentido
jogar os 20 mil jovens que hoje cumprem medidas socioeducativas com restrição
de liberdade nos presídios convencionais, controlados por organizações
criminosas. Ao sair desse sistema, teríamos jovens ainda mais violentos e,
possivelmente, associados a alguma facção”, afirma Casimira Benge, coordenadora
do programa de proteção à criança do Unicef no Brasil.
Leia a a seguir a entrevista de Casimira a CartaCapital.
CartaCapital: Faz
sentido atribuir a escalada da violência no Brasil aos adolescentes?
Casimira Benge: Na
verdade os adolescentes são muito mais vítimas de violência do que autores. Dos
21 milhões de brasileiros entre 12 e 18 anos incompletos, apenas 0,013%
cometeram crimes contra a vida. Mas a cada hora um adolescente é assassinado.
Neste quesito, o Brasil só perde para a Nigéria. O Unicef monitora a situação
com o Índice de Homicídios na Adolescência. Em 2005, fizemos uma projeção de
que 35 mil adolescentes seriam assassinados entre 2006 e 2012. Infelizmente, o
tempo mostrou que o diagnóstico estava bem próximo da realidade: 33,6 mil
pessoas dessa faixa etária morreram no período. Agora, a previsão é ainda mais
sombria. Se as condições atuais prevalecerem, 42 mil jovens serão mortos de
2013 a 2019 antes de completar a idade adulta.
CC: Por que o
Unicef se opõe à redução da maioridade penal?
CB: Reduzir a
maioridade não é uma solução. Ao contrário, pode agravar a violência.
Passaríamos a considerar como adultos todos os jovens com 16 anos ou mais. Ou
seja, o processo para a responsabilização, a natureza da punição a ser aplicada
e o lugar para o cumprimento da medida serão iguais aos de um adulto. Não faz
sentido jogar os 20 mil jovens que hoje cumprem medidas socioeducativas com
restrição de liberdade nos presídios convencionais, controlados por
organizações criminosas. Ao sair desse sistema, teríamos jovens ainda mais
violentos e, possivelmente, associados a alguma facção. Em vez de remediar o
problema, corremos o sério risco de agravá-lo. Além disso, não podemos perder
de vista que, dentro das prisões, esses adolescentes podem sofrer graves violações.
Há até um problema logístico. Os presídios já sofrem com falta de vagas. Sem
falar dos reflexos da maioridade para um conjunto de outros direitos.
CC: Como assim?
CB: O Brasil é um
dos recordistas mundiais em mortes no trânsito. Pela atual legislação, a
permissão para conduzir um automóvel só pode ser concedida a quem tem mais de
18 anos, pois o motorista tem de ser imputável, caso venha a cometer algum
crime na direção do veículo. Se a maioridade for reduzida, os adolescentes com
mais de 16 anos poderão conquistar o direito de dirigir. E sabemos que o número
de acidentes é muito maior entre os motoristas mais jovens. Pior: eles podem
ter acesso a bebidas alcoolicas e cigarro. Em decorrência disso, é possível até
haver um aumento dos casos de crimes sexuais.
CC: Qual é a
tendência mundial em relação a este tema?
CB: Os países são
livres para adotar seus próprios critérios. A maioria das nações estabelece
como idade mínima para a responsabilização os 12 anos de idade, mas a
maioridade penal completa, o momento em que o cidadão passa a ser punido como
um adulto, é quase sempre aos 18 anos. São raras as exceções, a exemplo dos
EUA, onde cada estado tem autonomia para definir a regra, mas normalmente a
maioridade começa antes dos 18. Mas vale lembrar que os americanos começam a
reavaliar essa postura, pois diversos estudos indicam que o encarceramento
precoce não garante a redução da violência. Em vários países, como Colômbia,
Espanha, Uruguai, Chile, houve grandes debates sobre a redução da maioridade,
mas nenhum deles baixou de fato. Em vez disso, criaram regimes especiais para
adolescentes com idade entre 16 e 18 anos, numa linha semelhante do que o
Executivo brasileiro propõe agora.
CC: A senhora
considera uma alternativa razoável a proposta de aumentar o tempo de internação
dos adolescentes infratores?
CB: Acho razoável
aumentar o tempo de internação de quem pratica crimes mais graves, como
homicídio, latrocínio, estupro e sequestro. Desde que isso ocorra em um regime
diferenciado dos adultos. Somos contra a redução da maioridade, mas
reconhecemos que o Brasil precisa dar uma resposta à violência, inclusive
aquela praticada por adolescentes. É possível responsabilizar com mais rigor os
infratores sem necessariamente tratá-los como adultos, que tem outro grau de
maturidade e capacidade de discernimento. Isso pressupõe respeitar a justiça
especializada e a proporcionalidade dos crimes.
CC: Dados do
Ministério da Justiça revelam que 60% dos adolescentes internados para cumprir
medidas socioeducativas são negros, 51% não frequentava a escola, 49% não
trabalhavam e 66% vinham de famílias extremamente pobres.
CB: Exatamente. É
preciso ter cuidado para não criminalizar a pobreza. Nem todos que vivem em
situação de vulnerabilidade social praticam crimes. Mas muitas vezes
adolescentes pobres, que vivem nas periferias, sem perspectiva de futuro, são
seduzidos pelo tráfico e acabam presos com pequenas quantidades de droga. É até
complicado separar o usuário do traficante. Normalmente, se esse adolescente é
pobre, vai preso. Se é rico ou tem emprego fixo, é considerado um usuário.
Muitos desses adolescentes pobres nem sequer têm uma assessoria técnica
adequada durante o processo. As defensorias públicas não conseguem atender toda
a demanda. Mas precisamos admitir que o Estatuto da Criança e do Adolescente é
muito brando em alguns casos, assim como tem um rigor excessivo em outros. Um
pequeno traficante corre o risco de ficar internado por três anos, a mesma
punição máxima de quem mata.
CC: Isso seria
capaz de reduzir os índices de violência?
CB: Não adianta
mudar a legislação sem um conjunto de políticas públicas para a juventude, como
acesso à educação, à saúde, à cidadania. Se isso não for garantido aos
adolescentes, nenhum projeto punitivo será capaz de resolver o problema da
violência. É triste ver essa proposta de redução da maioridade emergir 25 anos
após aprovação do ECA pela Câmara. A mesma Casa que aprovou uma avançada
legislação especializada, considerando as crianças e adolescentes como sujeitos
de direitos, influenciando outros países, agora pode promover um grande
retrocesso. Via http://www.cartacapital.com.br/
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Marcos Imperial