O pedido de abertura de inquérito, criminal, por
suposto tráfico de influência "mostra que a vontade política de perseguir
o ex-presidente atravessou a fronteira do razoável e deixou de ser uma questão
individual ou do futuro do Partido dos Trabalhadores nas eleições de
2018", afirma Paulo Moreira Leite, diretor do 247 em Brasília; "O
esforço para atingir Lula, sem uma base jurídica consistente, representa um
risco para as conquistas democráticas da sociedade", acrescenta o
jornalista, destacando, ainda, ser "ridículo" investigar um
"ex-presidente que tem um empenho reconhecido, dentro e fora do país, para
ampliar o mercado para as empresas e produtos brasileiros no exterior. Deveria
ser aplaudido e não criticado".
Respondendo a um processo
administrativo pela acusação de ter sido "negligente" no andamento de
"245 feitos que estavam sob sua responsabilidade," o procurador
Valtan Timbó Martins Mendes Furtado é o mais novo candidato ao panteão de personagens
desses tempos inglórios em que a justiça tornou-se acima de tudo um grande
espetáculo.
No dia 8 de julho, Valtan
Timbó pediu a abertura de um inquérito para investigar as suspeitas de
"tráfico de influência" de Luiz Inácio Lula da Silva para favorecer a
Odebrecht em viagens internacionais.
É bom saber que as bases
reais para essa apuração dividem-se em nulas e ridículas, como vamos explicar
mais adiante. Em situação de normalidade política, quando os direitos e
garantias fundamentais são respeitados, e toda pessoa é tratada como inocente
até que se prove o contrário, esse pedido de abertura de inquérito seria um
episódio folclórico, condenado automaticamente ao esquecimento.
Mas vivemos outros tempos,
anormais, como explicou o ministro do Supremo Marco Aurélio Mello, onde
prende-se primeiro para apurar depois.
Um dos presos da carceragem
de Curitiba, hoje, é o executivo Alexandrino Alencar, que estava presente num
jatinho alugado pela Odebrecht para uma viagem de Lula em 2013. Foi essa viagem
que deu origem a uma reportagem em tom de escândalo da Época sobre um "voo
sigiloso" à República Dominicana.
O pedido de abertura de
inquérito, criminal, que pode levar à perda de liberdade em caso de condenação,
é preocupante exatamente por isso.
Mostra que a vontade
política de perseguir o ex-presidente atravessou a fronteira do razoável e
deixou de ser uma questão individual ou do futuro do Partido dos Trabalhadores
nas eleições de 2018.
Gostem ou não seus
inimigos, Lula confunde-se com a democratização e as conquistas de direitos da
população pobre do país, a inclusão e o progresso social.
O esforço para atingir o
ex-presidente, sem uma base jurídica consistente, representa um risco para as
conquistas democráticas da sociedade. Trinta e cinco anos depois de ter sido
preso por 40 dias durante a ditadura militar, acusado de desrespeitar a Lei de
Segurança Nacional que proibia greves, a perseguição a Lula é uma tentativa
óbvia de retrocesso político.
Começando pela má qualidade
da denúncia. As bases reais para essa investigação já tinham sido descartadas
há dois meses pela procuradora original do caso, Mirella Aguiar.
Foi ela que acabou escalada
para examinar um pacote de recortes de jornais e revistas sobre as viagens de
Lula, entregue ao Ministério Público do Distrito Federal com o título oficial
de Notícia de Fato. Claro que era possível ler insinuações cabeludíssimas
naquele papelório. Segundo a Época, citando procuradores mantidos em
conveniente anonimato, "as relações de Lula com a construtora, o banco e
os chefes de Estado podem ser enquadradas, 'a princípio', em artigos do Código
Penal. 'Considerando que as obras são custeadas, em parte, direta ou
indiretamente, por recursos do BNDES, caso se comprove que [...] Lula também
buscou interferir em atos práticos pelo presidente do mencionado banco (Luciano
Coutinho), poder-se-á, em tese, configurar o tipo penal do artigo 332 do Código
Penal (tráfico de influência)', diz trecho da peça reproduzido."
Num despacho assinado em 18
de maio, a procuradora Mirella de Aguiar deixou claro que o calhamaço chamado
Notícia de Fato não passava de um boato. Não continha fato algum. Resumindo
suas conclusões, ela escreveu com clareza:
"Os parcos elementos
contidos nos autos -- narrativas do representante e da imprensa desprovidos de
suporte provatório suficiente -- não autorizam a instauração de imediata
investigação formal em desfavor do representado."
Em português claro: não
havia nada para se fazer com os "parcos elementos desprovidos de suporte
provatório" a não ser esquecer o assunto. Mas o Judiciário não funciona
assim -- muito menos em casos de alta repercussão política.
Pede cautela, precaução.
Adora rever tudo mais uma vez, como já percebeu todo mundo que teve um caso na
Justiça. Ninguém quer mandar para o arquivo um caso que pode ser desenterrado
como escândalo, mais tarde.
Também há -- vamos admitir
-- o fator circo.
Utilizando os meios de
comunicação para amplificar a dimensão de suas investigações e ganhar prestígio
social e mesmo força política, muitos procuradores se tornaram obrigados a honrar
uma contrapartida. Precisam dar satisfação aos deuses que os glorificam. São
particularmente sensíveis ao coro midiático, que classifica toda declaração de
inocência como prova de impunidade. Isso, de uma forma ou de outra, assegura um
ambiente político no interior da instituição, que pré-dispõe a pedir
condenações pesadas. Não vamos esquecer: foi a partir do Ministério Público que
a teoria do domínio do fato sem prova, foi introduzida na AP 470.
É bom esclarecer que não
acho que isso ocorreu com Mirella Aguiar. Ela despachou uma denúncia que
recebeu, da forma que considerou mais adequada.
No Brasil de nossos dias,
muitas denúncias até nascem de parcerias notórias entre jornalistas e
procuradores interessados nos benefícios mútuos a partir de um escândalo.
Quando se prova que não tinha o menor fundamento, denuncia-se a
"pizza". Já leu Marco Zero, de Umberto Eco? Pode ser útil.
Tudo isso permite entender
porque, no mesmo despacho em que assinalava a falta de "suporte
probatório", Mirella Aguiar tenha dado um prazo de 90 dias para novas
informações, com exigências que chamam atenção. Chegou a pedir que a Polícia
Federal -- que faz o registro de fronteiras -- informasse todas as entradas e
saídas de Lula desde que passou a faixa para Dilma Rousseff.
O prazo para uma nova
decisão estava marcado para 17 de agosto. Quarenta dias antes, porém, num
movimento que uma nota do Instituto Lula define como "irregular,
intempestivo, injustificado", o procurador Valtan Timbó decidiu apresentar
o pedido de abertura de inquérito. Não se sabe as consequências reais dessa
iniciativa. Mas seu significado é claro. Se havia a possibilidade de Mirella ou
outro procurador mandar arquivar o caso, o que seria totalmente coerente com o
primeiro despacho, o pedido de abertura trava essa decisão. A partir de agora,
as perguntas são outras. Você sabe muito bem aonde elas podem chegar, certo?
O ponto ridículo é
investigar Lula, ex-presidente que tem um empenho reconhecido, dentro e fora do
país, para ampliar o mercado para as empresas e produtos brasileiros no
exterior. Deveria ser aplaudido e não criticado.
Só para ficar num caso
conhecido, que envolve Lula, Dilma e a Odebrecht -- o porto de Mariel, em Cuba.
Foram anos de massacre. O que se vai dizer agora, depois que Washington e
Havana reataram relações? Quem fez papel de bobo? Quem tentou atrapalhar um
investimento que trouxe e trará benefícios econômicos e diplomáticos?
Alô, provincianos: os
estadistas da globalização fazem isso todo dia -- Bill Clinton em primeiro
lugar. É normal e benéfico. Só uma visão absurda de relações internacionais no
século XXI pode enxergar que "em princípio" essa atividade pode ser
enquadrada no Código Penal. Em princípio, meus amigos, toda pessoa é inocente
até que se prove o contrário.
A diplomacia brasileira
ganhou um novo eixo no governo Lula, nos países fora do universo desenvolvido
que se tornaram prioridade econômica direta. Fora do governo, é natural que
Lula seja recebido com simpatia e até mais do que isso. Tem credibilidade para
sugerir, propor, conversar. Não pode ser acusado de fazer uma diplomacia
oportunista, pois sempre respeitou os países menos desenvolvidos e suas
populações. Na condição inteiramente nova de ex-presidente, ele pratica uma
continuidade com as prioridades construídas em seu governo. Prega o que fez.
Como se aprende em todo curso de relações pública, o aval de uma personalidade
admirada pode ser uma imensa alavanca para bons investimentos. A boa imagem de
Lula é um trunfo para o Brasil e os brasileiros.
A questão essencial se
encontra nos " parcos elementos contidos nos autos," que não
autorizam a instauração de imediato" de investigação formal" contra
Lula, como escreveu Mirella.
Lula, antes de mais nada, é
um cidadão privado. Tem todo o direito de andar pelo mundo, dizer o que pensa,
conversar, sugerir. Sua caneta não assina contratos pelo governo, não demite
funcionários nem ministros. No mundo dos "parcos elementos", não há
provas. O que se quer é construir uma narrativa em que tudo se insinua, nada se
demonstra -- e os meios de comunicação fazem sua parte.
(Quanto a Valtan Timbó, seu
passivo de 245 acusações de negligência, em denuncia formulada pelo Conselho
Nacional do Ministério Público, era uma notícia a espera de um repórter. Ele
foi citado numa reportagem do Globo sobre um escândalo sobre licitações no
Tribunal de Contas da União. O jornal registra a "insatisfação de
policiais" com o procurador que, para eles, "demorou demais em
elaborar a denúncia." Conforme o jornal, a operação foi deflagrada em
dezembro de 2004 mas apenas em maio de 2007 foi feita a denúncia, "sem
nenhum ato adicional ao trabalho da PF." Em outro motivo de reclamação,
Valtan Timbó levou nove meses para denunciar vândalos que depredaram o
Itamaraty nos protestos de junho de 2013).
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Marcos Imperial