
“O
espírito natalino desnuda a realidade mais cruel do modelo no qual estamos
sendo conduzidos. Não basta só o consumo. É necessário o consumismo exacerbado.
Jaciara
Itaim, Carta Maior
A
chegada do mês de dezembro reproduz a cada ano cenas que poderiam ser
consideradas completamente irracionais por algum alienígena que se aproximasse
de nosso País. Estamos em pleno final de ano, auge do verão aqui no hemisfério
sul, com temperaturas bastante elevadas. No entanto, os ambientes todos estão
tomados por indivíduos fantasiados com roupas pesadas e quentes, imitando a
figura emblemática e mitológica do Papai Noel. A tentativa é de reproduzir o
contexto da Lapônia, uma província da Finlândia, onde as temperaturas podem
atingir mínimas de -20° C nessa época do ano.
Vem
daí então o imaginário da neve, do pinheirinho, do trenó com as renas e tudo o
mais que cerca o ambiente de Natal. Estranho sincretismo esse que conseguiu
unir as tradições bíblicas que envolvem o nascimento de Jesus às estórias
fantásticas do velhinho barbudo do norte europeu em um território equatorial e
do outro lado do Oceano Atlântico. A tradição dos presentes - que remonta, na
verdade, à chegada dos reis magos no dia 6 de janeiro - foi sendo aos poucos
substituída pela pressão social em torno da oferta dos presentes no próprio dia
do nascimento do menino Jesus.
Consumir, consumir, consumir e oferecer
Assim,
o espírito natalino se converteu à sanha das compras e das aquisições.
Festejar o Natal passou a ser sinônimo de desejo de consumo, impulso expresso
por todos - desde as crianças até os adultos de todas as idades e gerações. As
cartas ingênuas à entidade desconhecida de barriga grande e barbas brancas, as
trocas de presentes no ambiente de trabalho, as festas familiares com
as encomendas acertadas previamente ou sob efeito surpresa do amigo-secreto.
Pouco importa a forma, uma vez que o essencial é um elemento apriorístico: o
consumo.
É
importante reconhecer que a realidade brasileira é pródiga na criação e na
ampla aceitação social de datas “comemorativas”, onde o foco é sempre o
presentear outrem por meio de compras. Apesar de o Natal ocupar, de longe, o
primeiro lugar em importância e em faturamento, na seqüência surgem outros
momentos que são utilizados para que a indústria e o comércio esquentem seus
motores ao longo do ano. É o caso do Dia das Mães, Dia dos Namorados, Dia das
Crianças e Dia dos Pais, para citar alguns exemplos. Para além das questões de
natureza cultural e de sociabilização, a grande marca deixada pelas
organizações que constituem a nossa formação capitalista relaciona-se ao verbo
comprar. Ou seja, transformar esse misto de desejo e de imposição social em
circulação de mercadoria, em movimentação acelerada de valores de
troca e de valores de uso.
Nesse aspecto, ganha relevância o papel desempenhado pelas estruturas de
propaganda e marketing. Trata-se da criação de necessidades sociais e culturais
de forma artificial e exógena, em processos onde os indivíduos se sintam
motivados a desenvolver determinadas ações ou a adotar certos comportamentos em
nome de uma espécie de “unanimidade construída”. O verdadeiro bombardeio a que
estamos todos submetidos por várias semanas antes mesmo da data da ceia tem uma
mensagem muito clara. Natal feliz é Natal com presente. Quem não recebe nada
comprado na data deve se sentir menosprezado ou desprezado por aqueles que o
cerca. Quem se atreve a não comprar presentes para oferecer não merece o
carinho nem o bem querer de seus pares. A comemoração é fortemente carregada do
elemento simbólico: o querer é avaliado a partir da quantidade, da exuberância
e dos preços.
A criação das necessidades e a generalização das compras
Vale
recordar, por outro lado, a importância adquirida por uma forma muito especial,
em meio à multiplicidade de estratégias mercadológicas: a publicidade dirigida
ao público infantil. Apesar da festa não ser dirigida apenas às
crianças, o foco recai sobre essa parcela expressiva da população, que termina
por exercer influência significativa sobre as decisões das famílias no período.
Ainda que os espaços de tangência entre a ética e a legalidade estejam
presentes em todo o tipo de propaganda, no caso específico do universo infantil
a situação é ainda mais escabrosa. São pessoas ainda em processo de formação e
amadurecimento, sem quase nenhuma capacidade de discernimento entre o
necessário e o supérfluo, entre o real e a fantasia, com pouca referência a respeito
de preços e capacidade de aquisição. Ou seja, é o caso típico de atividade que
deve ser proibida por lei - em razão de seus reconhecidos efeitos nocivos para
o conjunto da sociedade – e não ser liberada em nome da liberdade do mercado e
da possibilidade de amplo de acesso à informação.
O
padrão civilizatório hegemônico nos tempos atuais determina que a conquista da
felicidade e a vigência do bem estar estão intimamente associados à capacidade
do indivíduo ter e comprar. A posse dos bens é elemento sempre martelado pelos
meios de comunicação, a todo momento associada à imagem da pujança,
da beleza e do amor. Quem tem, pode. Quem tem mais, pode mais. Quem tem mais
caro, pode ainda muito mais. Ocorre que na sociedade capitalista, a tendência é
a da generalização das relações mercantis. Assim, via de regra, para se ter
algo é necessário processar o ato da compra. A relação de troca se realiza por
meio do equivalente geral, o dinheiro. E para os que ainda não reúnem as
condições de recursos para a compra do presente desejado, o sistema oferece o
instrumento mágico que permite a antecipação do consumo: o crédito.
A intermediação da esfera financeira ajuda a completar o ciclo da
realização do capital, com a garantia de que o consumo se efetive mesmo na
ausência dos recursos monetários no momento da aquisição do bem. Isso porque o
modelo envolvido na dinâmica do capitalismo pressupõe a produção e a venda das
mercadorias de forma contínua, sempre em escala crescente, para promover a
acumulação concentrada de riqueza.
Esmagamento do espaço para práticas de sustentabilidade
De forma geral, a lógica que orienta a ação da empresa privada é a da
maximização do lucro no curto prazo, sem nenhuma perspectiva de médio e longo
prazo. No jogo pesado das disputas por novas fatias de mercado não existe muito
espaço para a noção da sustentabilidade. Pouco importa se ela se refere ao
aspecto econômico, ao elemento social ou à sua dimensão ambiental. Assim, o que
interessa na “racionalidade” inerente ao processo de acumulação de capital é o
crescimento do consumo em toda e qualquer escala. Portanto, a mudança
comportamental envolvendo inovações como “consumo consciente” ou “processos
sustentáveis” só se viabilizam com a entrada em cena das políticas públicas,
proibindo determinadas ações ou estimulando outras alternativas. A lógica pura
do capital, atuando com plena liberdade, combina uma dialética de criação e
destruição em sua própria essência.
Assim, o que todos verificamos à nossa volta com a aproximação do
espírito natalino é a cristalização mais evidente da forma de funcionamento da
economia capitalista. Nas sociedades hegemonizadas pelo padrão civilizatório do
mundo ocidental, o mês de dezembro radicaliza e potencializa o comportamento
social que assegura a reprodução ampliada dessa forma particular de organização
social e econômica. Não basta um Natal que seja marcado apenas pelo espírito da
solidariedade e pelo sentimento da fraternidade. O período das festas deve ser
o momento do consumo, por excelência.
Os ingredientes que contribuem para manter esse gigante em movimento são
introduzidos de forma crescente ao longo do processo. Isso significa a
incorporação crescente de bilhões de novos agentes no mercado consumidor e a
generalização do acesso às compras em escala global. Além disso, torna-se
necessário avançar bastante nos processos envolvendo a chamada “obsolescência
programada”, de forma a garantir a continuidade do ciclo de consumo por meio da
redução da vida útil dos produtos. A propaganda também joga um papel essencial,
ao incutir nos indivíduos valores e desejos que estão muito distantes das
necessidades, digamos, mais reais e concretas.
Em suma, não é mais suficiente que as pessoas exerçam sua função de
compradores finais de bens e serviços. O espírito natalino desnuda a realidade
mais cruel do modelo no qual estamos sendo conduzidos. Não basta apenas o
consumo. Faz-se necessário o consumismo exacerbado."
(*) Economista e militante por um mundo mais justo em termos sociais e
econômicos.
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Marcos Imperial