"Num país
onde o monopólio da mídia criou uma ética de fim do mundo, o jornalismo da EBC
representa uma tentativa de abrir uma brecha num sistema fechado de
comunicações, que impede os brasileiros de se informar com liberdade. Condenado
por juristas, entidades civis e por Dilma Rousseff, o inaceitável decreto que
pede afastamento do presidente Ricardo Melo pretende interromper um processo de
democratização indispensável numa situação em que a ditadura do pensamento
único criou monopólios privados que atuam como uma forma perversa de partido
político", diz o colunista Paulo Moreira Leite, sobre a decisão do
presidente interino Michel Temer de intervir na EBC.
O vergonhoso
golpe de caneta que pretende afastar o jornalista Ricardo Melo da presidência
da EBC, onde tem um mandato legítimo de quatro anos para cumprir, não deve
esconder a questão real por trás do episódio.
Dilma Rousseff
fez muito bem ao se manifestar, ontem, dizendo que "é absurda e
lamentável a decisão do governo provisório de violar a lei que criou a EBC.
Mais um ataque ao Estado Democrático de Direito", afirmou.
Além de
garantias essenciais na história política de qualquer povo, o que também está
em jogo para a maioria dos brasileiros é a sobrevivência de um necessário
processo de democratização dos meios de comunicação liderado pelo jornalismo da
TV Brasil, hoje a principal e muitas vezes única voz dissonante – fora das
redes sociais – no coro dos contentes que ajudou a articular o afastamento
temporário de Dilma num esdrúxulo impeachment sem a demonstração de crime de
responsabilidade.
A quem ainda
duvida da atuação maligna dos meios de comunicação neste difícil momento
histórico, recomenda-se a leitura de "Apocalipse do Jornalismo," de
Mario Vitor Santos, disponível na internet. Duas vezes ombudsman da Folha de S.
Paulo, onde também ocupou diversos postos dirigentes, Mário Vitor escreve que
"a ruptura institucional em via de ser completada no Brasil é resultado
direto da degradação do jornalismo posto em prática por quase todos os meios de
comunicação no país. Os cuidados éticos foram sacrificados a tal ponto que o
jornalismo promove a derrubada de uma presidente até agora considerada honesta.
"
Neste universo
lamentável, a EBC destacou-se, por abrir uma pequena, quase ínfima, brecha
no monopólio da mídia, como um anão numa floresta de gigantes privados,
articulados e uniformizados.
Num
processo acentuado em anos recentes, em especial na crise política atual, a
emissora tem exibido programas de jornalismo que oferecem um contraponto
indispensável ao padrão midiático de fim de mundo descrito por Mario Vitor.
Este comportamento tem permitido confrontar uma insuportável ditadura do
pensamento único, reconhecido até em levantamentos científicos, a começar pelo
estudos do Manchetômetro, sediado no Instituto de Pesquisas Sociais e Política
da Universidade Estadual do Rio de Janeiro.
Como já é
admitido por vozes de espectadores e entidades que atuam na defesa de uma
democracia ampla e plural em nosso país, empenhados no combate a um
decreto que representa um primeiro passo numa sequencia de mudanças nefastas e
previsíveis, o jornalismo da EBC tem dado voz a um ponto de vista
político partilhado – mas silenciado – de uma parcela expressiva da população
brasileira.
Ao fazer isso,
contribuiu para assegurar um equilíbrio mínimo à arena dos meios de
comunicação, cenário decisivo da luta política das sociedades contemporâneas.
Ligando-se a uma força social gigantesca mas sem acesso a meios interessados em
expressar seu ponto de vista, sua prática cumpriu um papel essencial ao Brasil
de nosso tempo. Fez o combate pela democratização da mídia --na vida prática.
Em função
desta atuação, que observadores a serviço do monopolio privado descrevem de
forma interesseira como "aparelhamento" e jornalismo
"chapa branca," não é de estranhar que uma das primeiras aberrações
geradas pelo espetáculo que levou ao afastamento de Dilma tenha sido o decreto
que determina o afastamento de um diretor que exerce um mandato legal, autônomo
em relação aos governos de turno, situação que é uma condição necessária -- mas
obviamente não suficiente -- para um jornalismo digno desse nome.
Fazendo
uma analogia com regras necessárias a todo debate civilizado, essa situação
permite o contraditório, estimula o confronto e o questionamento de narrativas
e opiniões colocadas em circulação pela mídia reinante. É parte essencial de
uma democracia de verdade, na qual todos podem aprender e se enriquecer com a
apresentação de argumentos -- de um lado e de outro.
Os
estudiosos da comunicação conhecem -- na teoria -- as condições estruturais que
construíram um pensamento único a partir de um conjunto de concessões privadas,
que se alimentam de um sistema de monopólio que é condenado pelos capítulos da
Constituição de 1988 que regulam o assunto. Estamos falando de propriedades
cruzadas, que asseguram o monopólio em todos os níveis. Da concentração
de verbas publicitárias. Das concessões feitas com base em favores
políticos, que asseguram a eternização de oligarquias no plano regional e
nacional.
Força que
se reproduz e autoalimenta, por sua própria natureza o monopólio oferece poucas
brechas reais para sua contestação. Mesmo um governo progressista, como o
condomínio Lula-Dilma, acabou envolvido por ele, em grande parte iludido pela
miragem de que seria vantajoso fazer um acordo com um adversário excessivamente
poderoso em vez de mobilizar forças disponíveis construir uma alternativa de
acordo com os interesses do conjunto da sociedade.
Mas seria
errado e injusto -- como se ouve com frequência -- acusar Lula-Dilma de nada
terem feito para encontrar uma alternativa. Através da EBC, criada no governo
Lula, numa luta infernal no Congresso, fez-se uma tentativa, ainda que modesta
e muitas vezes incompreendida, erradamente criticada, de democratização da
mídia.
Essa
atuação permitiu atrair e fidelizar um público crescente, ainda que a audiência
de hoje esteja longe de envolver grandes platéias. Uma vitória importante -- e
não apenas simbólica -- foi obtida, porém.
No
passado, a emissora parecia condenada a um destino semelhante ao de
publicações e personagens dissidentes forçados a lutar pela sobrevivência sob
ditaduras especialmente severas. Quase ninguém vê o que se faz e quem enxerga
não compreende o que se diz.
Ao
assumir, em anos recentes, em especial no período anterior a maio de 2016, a
cobertura da crise política em todos os seus aspectos, expondo com clareza
aquilo que estava em jogo do ponto de vista de uma imensa parcela de
brasileiros, a TV Brasil cumpriu a obrigação que se espera de uma TV
pública. Deu voz e rosto a quem era submetido a um regime de silêncio
compulsório.
Essa
novidade marcante, decisiva, ajuda a entender por que tornou-se alvo de uma das
primeiras medidas ilegais, brutas -- e desastradas -- do governo
temporário.
Minha
experiência em pouco mais de dois anos como apresentador do Espaço Público,
programa de entrevistas da EBC que ajudei a conceber ao lado de uma equipe de
espírito profissional respeitável, confirma aquilo que já tinha
aprendido em mais 40 anos de jornalismo.
Por mais
que se possa aceitar e reconhecer o jornalismo como atividade de empresas
privadas, escola da maioria dos profissionais brasileiros num país onde este é
o setor amplamente dominante, cabe admitir que a TV pública cumpre um papel
único na circulação de informações confiáveis e na construção de um ambiente
político democrático.
Isso
ocorre, em parte, porque sua atividade não está voltada para a produção de
lucros privados -- como vender biscoitos ou oferecer aplicações rentáveis
no mercado financeiro -- nem submetida aos movimentos de monopólio econômico e
político em vigor num país onde a palavra mídia passou a designar uma forma
espúria e dolorosamente real de partido político.
Ocupando
um lugar diverso, uma TV pública se justifica pela atenção relevante a
questões essenciais, que contribuem para o fortalecimento das instituições
democráticas, como a formação da cidadania e a criação de um ambiente
essencialmente plural e enriquecedor, na cultura e na política. Sem fazer do
mercado seu ponto de partida e de chegada, pode cultivar um interesse genuíno
pelo destino do país como um conjunto, e priorizar grandes maiorias às voltas
com carências que todos conhecem.
A
condição, para isso, obviamente, é um jornalismo feito com autonomia também
perante os governos. Estes têm uma tendência -- compreensível -- de tentar
transformar todo equipamento de comunicação numa agência de propaganda, o que
reforça a necessidade de que os mandatos de governo e da direção da EBC não
sejam coincidentes, evitando uma relação direta de dependência.
(A mesma
tendência se observa no jornalismo produzido por monopólios que atuam como
aparelhos ideológicos privados. Aqui a dependência de jornalista e do
jornalismo em relação ao patrão-acionista é ainda mais acentuada e direta, sem
intermediação nem regras objetivas, ainda que em tempos de hipocrisia liberal
seja falta de educação falar sobre isso).
A história da
curta existência de oito anos da TV Brasil mostra derrotas, empates e vitórias
nesse terreno. Sua vida interna é semelhante a qualquer fatia do Estado
brasileiro, possuindo conflitos que espelham a vida real numa sociedade
heterogênea e muito desigual. Ainda que seja forçoso reconhecer que muitos
erros foram cometidos e que há muito a ser feito, o saldo geral é
indiscutivelmente positivo.
No Brasil de
hoje, este jornalismo deve ser reconhecido como uma alternativa real a uma
parcela imensa de brasileiros que nunca foram atendidos em suas garantias
essenciais -- a começar pelo direito de se informar em liberdade.
Este é o debate. Via jornalista e escritor Paulo Moreira diretor do 247 em Brasília.
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Marcos Imperial