Por Paulo Moreira Leite jornalista, escritor e diretor do 247 em Brasília.
Para quem imaginava que o
Brasil havia ingressado numa fase de conformismo político absoluto, a pesquisa
do Data Folha divulgada neste fim de semana contém uma revelação essencial.
Nada menos que 63% dos brasileiros estão fartos do governo Michel Temer, pedem
sua renúncia e querem ir às urnas para escolher um novo presidente. São números
que formam o horizonte político do próximo período e devem fazer parte de
articulações, conversas de pé de ouvido e protestos de rua daqui para a frente.
Numa conjuntura de colapso visível da coalização golpista que
tomou posse em 12 de maio, naquele processo que o ministro Joaquim Barbosa
classificou como "encenação", esses 63% assumem a única perspectiva
aceitável para enfrentar as incertezas do momento. Contra o golpe dentro do
golpe, mais um "choque institucional" sem face visível em
construção pelos donos do poder econômico e político que se tornaram senhores
do Estado brasileiro com a deposição de Dilma Rousseff, os 63% lembram que não
há melhor saída do que o voto direto. E é bom não haver uma sombra de dúvida a
respeito.
Após uma vergonhosa de sucessão de "choques
institucionais" e outras situações típicas de guerras políticas de beira
de abismo exibidas nos últimos dias, é obrigatório reconhecer uma verdade
histórica. Somente pela recuperação da soberania popular o país terá a
oportunidade de substituir um governo falido em tempo recorde por um presidente
eleito pelo voto direto, capaz de receber das urnas a imensa energia necessária
para enfrentar uma das piores crise da história do capitalismo, que atinge o
Brasil de forma especialmente dramática.
Neste ponto, o calendário ocupa um lugar essencial. Conforme a
Constituição, caso Temer seja afastado até 31 de dezembro, a convocação de
eleições diretas no prazo de 90 dias é um processo automático – salvo um novo
"choque institucional" improvisado, sabe-se lá em qual laboratório
institucional, desta vez.
A este respeito, cabe até uma piadinha esotérica. Imagine se,
depois da entrevista com a presidente do STF Carmen Lucia, exibida ontem, no
programa chamado Minha Estupidez, a atriz-escritora Fernanda Torres tenha sido
convidada a participado de outro evento na Capital Federal. Imagine ainda,
sempre neste roteiro de pura comédia de ficção política, que Fernandinha tenha
sido chamada para uma conversa na residência do deputado Heráclito
Fortes, o Boca Mole nas listas da Odebrecht – foi ali que ocorram vários
encontros que levaram ao impeachment de Dilma – e, no final, tenha saído dali
como nova candidata a presidente da República, escolhida por voto indireto.
Será possível?
Ou será que a coisa anda tão confusa que acabei invertendo
os papéis das duas?
A questão está colocada. Caso Michel Temer permanece no
cargo após a data fatídica, ocorre uma escolha indireta pelo Congresso e aí o
esforço pelo retorno a democracia será travado em circunstâncias mais difíceis.
Para começar, não só haverá um (ou uma) presidente no cargo, mandato novo
em folha, com direito a beneficiar-se do efeito anestesiante sobre a população
que o apoio incondicional do monopólio dos meios de comunicação costuma
assegurar a seus escolhidos, ao menos por um período.
Nesta circunstância, será preciso enfrentar uma luta
dura nas ruas do país -- e também nos corredores de Brasília -- para aprovar
uma emenda constitucional para garantir o voto direto, evitando que um governo
escolhido pelo conchavo de gabinetes, agora sem qualquer resquício, mesmo
remoto, do voto popular, possa dar sequencia ao plano de recolonização do país
pelos interesses globalizados, internos e especialmente externos.
Por mais que o espírito natalino seja capaz de
produzir emoções conhecidas nessas "retinas tão fatigadas", como
disse Carlos Drummond de Andrade diante daquela pedra que surgiu em seu
caminho, um "fato extraordinário", há muito deixei de
acreditar na existência de Papai Noel. Não consigo imaginar que a renúncia
faça parte do conjunto de opções realistas de um presidente que assumiu o
governo através de um golpe de Estado articulado com base na dissimulação e na
traição aos princípios democráticos. Não vejo como esperar um "ato de
grandeza, após uma sucessão de opções mesquinhas. Por essa razão, ainda
que a marca de 63% aponte para uma maioria confortável, irrespondível, me
parece prudente acreditar que uma vitória democrática não irá ocorrer sem um
grande esforço para transformar essa matemática em força política.
Em 127 anos de história, nossa República registra
duas renúncias dignas deste nome. Uma delas, de Jânio Quadros, foi uma
tentativa de conquistar plenos poderes numa acrobacia de circo: abandonar o
governo num gesto repentino na esperança de retornar ao Planalto nos braços do
povo. Foi tão ridículo que acabou abandonado até pelos aliados mais próximos.
A outra foi o tiro no peito de Getúlio. Em
1954, com a força única dos que sacrificam a própria vida, Getúlio
abriu caminho para uma das maiores mobilizações populares da
história brasileira, capaz de bloquear um golpe militar que se encontrava
nos capítulos finais e assegurar, em 1955, a eleição do governo
desenvolvimentista de Juscelino Kubitschek. Nada que se compare aos personagens
e dores do Brasil neste verão de 2016, após duas décadas e meia de
pensamento único e do Fim da História, hoje em ritmo pós-verdade e a flexibilização
de princípios e direitos dos povos e países às conveniências aos poderosos da
globalização.
A renuncia como resposta a valores como decoro,
honra, dignidade, faz parte da lógica de governos que se apoiam em alguma forma
de legitimidade popular, que aceitam a noção de que não é possível administrar
um país sem o respaldo de uma parcela da sociedade, e a concordância de outra
parte. Isso explica porque até Richard Nixon, um presidente cuja falta de
escrúpulos no exercício do poder dispensa comentários, preferiu renunciar
quando a Suprema Corte chegou perto de fitas que provavam seu envolvimento no
escândalo Watergate. Nixon deixou a Casa Branca com os dedos em sinal de paz e
amor e um sorriso nos lábios -- num gesto óbvio de reconciliação, mesmo marota,
com a população de seu país.
A mudança neste código de conduta comum às democracias foi a
grande alteração de fundo produzida, no Brasil, pelo golpe de 31 de
agosto. Como era de se esperar, a partir daí os beneficiários do estado de
exceção não se julgam na obrigação de prestar contas ao povo. Possuem um tipo
de certeza alimentada pela auto suficiência, o que torna difícil encontrar uma
saída civilizada para seus atos. Podem renunciar para salvar a própria pele --
comportamento que depende, acima de tudo, da capacidade da população se
mobilizar em defesa de direitos e conquistas, processo que pode levar ao
abandono por parte de amigos e protetores.
Só consigo ver a luta pela recuperação da
democracia brasileira como um processo árduo e difícil, que pode levar um
período muito mais longo do que os quinze dias úteis -- contando a
segunda-feira, 12 -- que restam até 31 de dezembro. Seu resultado não
pode depender da boa vontade de um governante.
Isso acontece também por um bom número de razões. A
primeira é que Temer não é, a rigor, o dono de seu mandato mas o
instrumento daquele conjunto de forças que articulou um golpe parlamentar
contra um governo indesejável. Não pode bater a porta e ir embora, num ato
repentino de prima donna de ópera. Embora tenha assumido o Planalto na
esperança de ficar até 2018, e só os bajuladores incorrigíveis do jornalismo
gostavam de especular sobre uma reeleição sempre inviável, os compromissos que
assumiu implicam em mudanças que se projetam por várias décadas, quem sabe mais
de um século no futuro dos brasileiros. Valem trilhões de dólares para as
partes beneficiadas, implicam em mudanças relevantes na diplomacia mundial e na
distribuição de riquezas do planeta, num país que abriga um PIB comparável ao
da Itália e ao da Inglaterra, com um poder de influenciar o conjunto da América
Latina.
O segundo ponto é político-eleitoral. Os adversários
tradicionais do projeto Lula-Dilma não conseguiram construir uma alternativa
realista para disputar a presidência com chances de vitória. A renúncia de
Temer, desse ponto de vista, teria boas chances de se encerrar pelo retorno das
forças que governaram o país entre 2003 e 2016. No Data Folha de hoje, Lula é o
primeiro colocado num eventual primeiro turno em 2018. Não é pouca coisa,
considerando o massacre permanente a sua candidatura.
Isso quer dizer que mesmo contando com uma maioria de 63%, a
luta por diretas pode envolver uma disputa prolongada. Do ponto de vista
de quem faz a agenda do Planalto e tem os meios para que seja executada, a
prioridade é garantir a sobrevivência de Temer de qualquer maneira até o
fatídico 31 de dezembro. Depois disso, se não houver jeito, será preciso
processar sua substituição, sempre num ambiente de segurança máxima, sem
arestas nem pequenos desvios que possam abrir caminho a manifestação
indesejável do povo. Este cuidado que já chegou a maioria do STF, como se viu
no esforço para preservar os poderes de Renan Calheiros para conduzir a votação
de medidas essenciais – a começar pela PEC 55. Do ponto de vista dos vitoriosos
de 31 de agosto, esta é a agenda que importa. Quem estiver com ela irá ouvir
juras de amor eterno e e garantias de bônus por desempenho.
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Marcos Imperial