terça-feira, 28 de janeiro de 2025

Escravidão: caso Sônia chama a atenção de parlamentares

Sônia foi mantida em situação análoga à escravidão por 40 anos e tornou-se símbolo da luta contra essa violência - (crédito: Reprodução/Fantástico)

O caso de Sônia Maria de Jesus, uma mulher negra de 51 anos, cega de um olho, surda, não alfabetizada, resgatada após 40 anos, trabalhando na residência do desembargador Jorge Luiz de Borba, em Florianópolis (SC), em condições análogas à escravidão, não parece ser grave o suficiente para um maior endurecimento das leis relacionadas ao tema. A senadora Zenaide Maia (PSD-RN), vice-presidente da Comissão de Direitos Humanos do Senado, é uma das poucas vozes no Congresso a cobrar uma atuação mais contundente de instituições como o Ministério do Trabalho, o Ministério Público, juízes, parlamentares e governantes para erradicar o trabalho escravo.

“O Parlamento pode começar endurecendo as leis e criando instrumentos de investigação mais céleres e eficientes para combater a sistemática de trabalho análogo à escravidão”, disse. Zenaide lembra que o Brasil carrega uma dívida histórica com o povo preto, após condená-lo a 388 anos de escravidão “legalizada”. Ela ressalta que o país foi o último no mundo a abolir oficialmente a escravidão, mas alerta que as práticas análogas ainda persistem. Sobre o caso que envolve Sônia Maria de Jesus, a parlamentar disse que é “revoltante que um funcionário público, pago por todos nós, e que tenha como dever defender a Justiça e os direitos humanos, se veja envolvido nesse tipo de crime. Enquanto houver trabalho escravo, não haverá democracia. São seres humanos torturados e perseguidos há mais de 500 anos, desde que este país foi invadido pelos europeus”, criticou.

A deputada federal Sâmia Bomfim (PSol-SP) é, até o momento, a única parlamentar da Câmara que se manifestou publicamente contra a situação de Sônia. Desde o resgate, em junho de 2023, ela vem liderando esforços para dar visibilidade ao caso e exigir respostas das autoridades. Em 2023, Sâmia realizou uma audiência pública para discutir a história de Sônia, na qual ouviu parentes da doméstica e especialistas. “É um caso absurdo e que precisa de visibilidade para que haja justiça. É inadmissível que o Brasil permita que uma mulher negra, pobre e com deficiência seja submetida a tamanha exploração por tantos anos”, afirmou.

O coordenador geral de combate ao trabalho escravo do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC), Paulo César Funghi, afirmou que sua equipe está comprometida em reverter a situação de Sônia e exigir celeridade no julgamento do caso. “Pretendo oficializar documentos cobrando a solução desse caso. É urgente que a Justiça brasileira atue com responsabilidade para corrigir essa violação de direitos humanos”, observou. Funghi também afirmou que o caso de Sônia será um marco para sua gestão, que trabalha na conclusão do II Plano Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo. “Está obsoleto, pois tem mais de 15 anos de existência, e precisamos de medidas mais eficazes e atualizadas. Resolver o caso de Sônia é uma questão simbólica, pois escancara as falhas do sistema”, afirmou.

Síndrome de Estocolmo 

A psicóloga Carol Freitas explicou que o fato de Sônia Maria de Jesus ter aceitado voltar à casa do seu algoz, mesmo após ser resgatada, decorreu da falta de autonomia e da vulnerabilidade em relação às próprias decisões. "É possível que tenha desenvolvido a Síndrome de Estocolmo — uma resposta psicológica na qual a pessoa que foi sequestrada e mantida cativa sente afinidade, empatia e até amor pelo abusador. Relacionamentos de dominação e poder podem levar o indivíduo a desenvolver identificação com o agressor", disse.

Carol disse que em casos como esse, a vítima pode perceber o agressor como uma figura protetora, especialmente quando há períodos intermitentes de bondade. Isso resulta em uma dependência emocional, pela qual a vítima acredita que a sobrevivência depende da manutenção desse vínculo.

Para o historiador e filósofo Afrânio Gonçalves Castro, professor da Universidade Católica de Brasília (UCB), o caso de Sônia é um reflexo das falhas sistêmicas que perpetuam o trabalho escravo doméstico no Brasil. Ele ressalta que a persistência do problema indica a necessidade de aprimorar a fiscalização, garantir a punição dos infratores e fortalecer as políticas de proteção às vítimas. "Pessoas sem perspectiva de futuro acabam se tornando presas fáceis para falsas promessas", explicou.

O jurista Beethoven Andrade, ex-presidente da Comissão de Igualdade Racial da seccional DF da Ordem dos Advogados do Brasil, afirmou que o caso de Sônia apresenta riscos jurídicos ao direito de personalidade das pessoas resgatadas. "Esse comportamento foi comum no passado, quando pouco se debatia o trabalho doméstico não remunerado, em troca de alimentos e cama para dormir. Isso não é mais cabível, ainda que haja vínculo pessoal de convivência", frisou. O advogado trabalhista Eduardo Felype Moraes lembra que "essa fala de que o trabalhador 'é como membro da família' não exime o empregador de proporcionar condições de trabalho dignas aos funcionários". 

Reflexo do racismo

O trabalho escravo no Brasil está diretamente ligado ao racismo. O consenso sobre isso foi manifestado, ontem, num debate promovido pelo Ministério Público do Trabalho do Distrito Federal e de Tocantins (MPDFT), que reuniu entidades civis e movimentos sociais não apenas para lembrar do Dia Nacional do Combate ao Trabalho Escravo, que é hoje, mas, também, para discutir os esforços e os avanços no combate à degradação e à submissão de um ser humano a outro.

Lys Sobral Cardoso, procuradora do MPDFT explicou a história por trás do dia 28 de janeiro. Em 2004, houve uma fiscalização de combate ao trabalho escravo em Unaí (MG) que terminou em uma chacina. Três auditores fiscais do trabalho e o motorista do Ministério do Trabalho foram assassinados. Os irmãos Antério e Noberto Mânica foram apontados como mandantes do crime — terminaram condenados e presos.

Para a pesquisadora do Grupo de Pesquisa Trabalho e Teoria Social da Universidade de Brasília (UnB) e militante do Movimento Negro, Brenna Vilanova, "a escravidão contemporânea é uma continuidade da escravidão colonial. O trabalho análogo que vemos atualmente não deixa de ser racial, mais de 80% das pessoas resgatadas são negras", observou.

A procuradora-chefe do MPDFT, Paula de Ávila, chamou a atenção para o fato de que há um aumento dos casos de trabalho escravo em casas de família que envolvem empregados domésticos. "O Brasil é o país que mais emprega trabalhadoras domésticas. A ideia de seminários como esse é trazer a questão de domésticas no trabalho escravo para um debate e diminuir esse crime", salientou.

Valdirene Boaventura, de 47 anos, encaixa-se nesse perfil. Viveu a infância e a adolescência como doméstica no interior da Bahia. Começou a trabalhar aos oito anos e, nesse longo período em trabalho análogo à escravidão, sofreu abusos físico e sexual.

"Quando meu pai abandonou minha mãe com cinco filhos, eu e minhas irmãs fomos entregues a famílias com a promessa de que brincaríamos e estudaríamos. A realidade foi diferente. Se me perguntar o que é brincar de boneca, não sei responder", lamenta.

Aos 12 anos, Valdirene foi estuprada e deixou a casa em que estava. "A patroa me levava à casa da minha mãe, mas não sabia o que era pior: se a violência que na casa do patrão ou a que via na da minha mãe. Ela tinha um companheiro que fazia a mesma coisa com ela", relata.

Mesmo depois da fuga para Salvador, Valdirene viveu a rotina da violência. Depois de 30 anos, continua trabalhando como doméstica, mas tornou-se sindicalista da categoria e dedica-se a ajudar quem está na mesma situação. "Quando a gente escuta as histórias das empregadas que viviam em trabalho escravo, vê que é a mesma história", adverte. Fonte Correio Brasiliense 

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Marcos Imperial

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