segunda-feira, 20 de junho de 2011

Ocupação da CMN lembrou passado de lutas

QUANDO OLHA PARA o espelho, a sindicalista Soraya Godeiro enxerga a imagem da filha Bruna. Foi assim nos últimos dias. A cara de menina é semelhante. As roupas largadas são parecidas. O jeito inocente e ousado da juventude tem a mesma essência. O piercing no nariz marca a distância entre os dois tempos. É como o trailler de um filme já conhecido que insistiu em passar na tela da memória de Soraya durante os 11 dias em que mais de 100 jovens de classe média com idade de vinte e poucos anos – a maioria estudantes da UFRN - acamparam no pátio da Câmara Municipal.
A mãe se viu no mesmo papel da filha 27 anos depois de, num arroubo semelhante, ocupar a reitoria da universidade junto com os colegas em protesto ao aumento no preço da comida servida no Restaurante Universitário do campus. Hoje Bruna não quer só comida. Ela quer comida e também quer o impeachment da prefeita Micarla de Sousa. As reivindicações evoluíram embora num primeiro momento pareçam até mais utópicas que na época da ditadura militar. Soraya tinha 21 anos em 1984. A mesma idade que Bruna completou dia 10 de junho, quando o NOVO JORNAL descobriu a coincidência e encontrou as duas no pátio da Câmara Municipal, já no quarto dia de acampamento, durante uma das plenárias em que os estudantes decidiam os rumos do Movimento #ForaMicarla, que só deixou a Casa sexta-feira após um acordo com os vereadores que atenderam 100% das reivindicações dos manifestantes e reabriram a comissão especial de inquérito para investigar os alugueis de prédios públicos pela Prefeitura de Natal.
Se nos anos 80 Soraya foi a única mulher a participar do comando dos estudantes e despontou como uma das lideranças do movimento, no coletivo horizontal onde não há um líder identificado, Bruna foi uma das referências da comissão de alimentação e finanças do acampamento. Estudante de Serviço Social da UFRN, Bruna Massud de Lima vê semelhança entre os dois momentos, embora ressalte que em 1984 a ocupação da reitoria tenha sido organizada em outro momento político. Do tempo em que a mãe ocupou a reitoria, só conhece as histórias. “Sei que ela teve que colocar com o dedão a impressão digital na Polícia Federal, que saía com o pessoal de madrugada fazendo colagem de cartazes nas paredes da universidade e que ocupou o gabinete do reitor”, diz.
A estudante reconhece que herdou a consciência política dos pais. Se as histórias dela e da mãe se cruzam agora numa coincidência do destino, também não esquece os conselhos e a militância política do pai, o médico e ex-presidente da CUT, João Batista de Lima, o Zizinho. “Pesou muito a atividade política dos meus pais. Tive uma influência em casa muito grande. Lembro de campanhas em que as pessoas se reuniam lá em casa, carreatas, tudo isso ajudou a me formar politicamente”, conta a também bolsista da UFRN que trabalha num programa social desenvolvido em comunidades carentes.
A reportagem acompanhou a atuação de mãe e filha durante cinco dias do acampamento na Câmara Municipal. Ativista, Bruna tomou a frente em vários momentos na comissão de finanças, mas se manteve discreta durante as plenárias, onde os estudantes costumam expor o que estão achando do movimento e definem estratégias de luta. Diferente da mãe, que procurava sempre o microfone, Bruna foi mais observadora. Até na tensão com os boatos sobre a chegada da Polícia Militar as duas agiam diferente. Enquanto a estudante se mantinha aparentemente tranqüila, a sindicalista era uma pilha de nervos.
Na quarta-feira passada, antes de o Superior Tribunal de Justiça garantir a permanência dos estudantes na Câmara Municipal, a chegada da PM para retirar à força os estudantes do local era tida como certa. Uma hora antes do prazo final dado para a desocupação, a equipe do NOVO JORNAL encontrou Bruna caminhando à procura de uma amiga. Estava tranqüila, mas ansiosa. Tranquilidade não era bem o que definia a mãe. O relógio andava ligeiro quando o repórter encontrou Soraya na entrada do pátio: Como é que está o coração de mãe com a chegada da polícia? - Acelerado. Estou com taquicardia. E vai deixar a Bruna aqui quando os PMs chegarem? - Claro que vou, eu estou aqui com ela! Soraya e Bruna acreditam que a relação dos dois movimentos – o de 1984 e o de 2011 - está na mobilização da juventude.
A resistência marcou, de fato, as duas ocupações. Com mãe e filha juntas e ao mesmo tempo separadas pelo tempo, o eterno debate entre o passado e o presente se perde diante do momento. No fundo, a simbologia da experiência vivida por Soraya e Bruna – numa distância de 27 anos – só reforça as palavras de Belchior. É que apesar de termos feito tudo o que fizemos, ainda somos os mesmos. E vivemos como nossos pais.
Hoje eles querem outra prefeita
A certeza de que não precisam esperar quatro anos para interferir na política e mudar a realidade negativa da cidade onde moram é o combustível que move os militantes do Movimento #ForaMicarla. Se em 1984 a reivindicação, mesmo ainda sob a ditadura militar, era a manutenção do preço e a melhoria na qualidade da comida servida no restaurante universitário, 27 anos depois estudantes se reuniram para tirar do cargo a prefeita de uma cidade onde 85% de seus mais de 800 mil habitantes desaprovam a administração municipal de acordo com pesquisa da Consult divulgada em maio passado. “A gente quer mudar a realidade, não é só tirar a Micarla. É tudo o que vier depois. Quando a polícia tirar a gente, o movimento vai nascer de novo. Uma nova geração está se levantando”, dizia durante o acampamento o estudante do curso de Música da UFRN, Pedras Leão, de 22 anos.
Ao contrário de quem passou a acompanhar o movimento já no acampamento da Câmara Municipal, o #ForaMicarla não começou com essa organização apresentada no final. No início, durante as manifestações realizadas na rua que chegaram a reunir centenas de pessoas, alguns jovens partiram para ofensas pessoais à Micarla de Sousa, o que deu munição para os partidários da prefeita subjugarem o movimento. A estudante de Ciências Sociais da UFRN, Juliana Pires, foi quem montou a primeira barraca na Câmara Municipal. Ela lembra que, quando chegou, não conhecia nem o ponto que virou a principal trincheira de resistência do movimento na Casa: a Comissão Especial de Inquérito para investigar os alugueis de prédios pela prefeitura de Natal. “Eu não sabia nem que uma CEI já havia sido instalada, por isso tomei um susto quando disseram que ela foi extinta! A gente aprendeu muita coisa aqui no acampamento. Só tinha uma meia dúzia de gato pingado no início, umas cinco barracas. Mas agora está bonito demais”, disse olhando para as mais de 20 barracas montadas no pátio no auge do acampamento.
Esse processo que chamou a atenção da sociedade e emocionou quem acompanhou a luta pela resistência em permanecer na Câmara Municipal suscita comparações. Quem vivenciou as duas situações, seja como militante ou espectador, não tem dúvidas de que a ocupação de 2011 foi muito mais importante para a cidade. “O da reitoria era muito específico, sobre aquele momento. Conseguimos a solidariedade de estudantes de outros cursos, mas aqui é muito maior. Até porque não caio nessa de achar que aquele tempo as pessoas eram mais politizadas. Hoje é mais importante para a sociedade. A ousadia de reagir contra um governo faz desse movimento muito maior”, analisa o deputado Fernando Mineiro, um dos líderes da ocupação da reitoria de 1984.
 ...Ontem eles queriam comida mais barata
Em março de 1984, diante de reclamações e protestos sem sucesso contra a qualidade da comida servida no Restaurante Universitário, a Reitoria aumentou o preço do bandejão e provocou a revolta dos estudantes. O NOVO JORNAL procurou várias pessoas da época e ninguém conseguiu lembrar quanto custava a comida e de quanto foi o aumento. A insatisfação, segundo o estudante de Ciências Biológicas e hoje deputado estadual pelo PT, Fernando Mineiro, começou com os estudantes que vinham do interior ou de outros estados e moravam na residência universitária. “Era uma briga dos residentes. Nem o DCE tinha entrado. Depois é que, com as assembléias, os outros estudantes aderiram. Mas a reivindicação da ocupação era basicamente o aumento do bandejão do R.U. Aí é claro que durante o processo vão surgindo outras pautas, mas o principal era o preço do R.U”, recorda.
Na assembleia que definiu a ocupação do prédio da reitoria, mais de 800 estudantes lotaram o auditório da Reitoria e, assim que terminou a plenária, as pessoas foram ocupando os gabinetes. Juvêncio Hemetério, hoje sindicalista e bancário, era estudante de Ciências Contábeis, vê diferença entre o movimento de 1984 e o de 2011 justamente na amplitude da ocupação. Para ele, a ocupação da Câmara Municipal foi muito pacífica. “Esse é muito pacífico, as pressões foram menores. A gente ocupou os gabinetes, a sala do comando era a própria sala do reitor. O de agora é só o pátio”, analisa. O que lhe marcou na ocupação da reitoria é algo semelhante ao que ocorreu agora: a espontaneidade do movimento. “Apesar de pessoas que participavam de movimentos organizados, era muito democrático, tinha várias correntes. Naquela época era basicamente o PT quem dirigia, mas era um negócio organizado e muito democrático”, diz.

A reportagem não conseguiu falar com reitor da época, Genibaldo Barros, que está fora de Natal. O telefone celular também permanceu desligado durante a semana. O ex-vice reitor da UFRN, Daladier da Cunha Lima, no entanto, comentou os acontecimentos daquela época, tendo sido também uma testemunha ocular privilegiada. Questionado se a reivindicação dos estudantes era justa, Cunha Lima defende a universidade. Para ele, mesmo não lembrando o valor exato do acréscimo, se houve reajuste é porque foi necessário. “Não recordo se era justo, mas devia ter um motivo”, afirma antes de responsabilizar a situação financeira da universidade quando perguntado sobre a qualidade da comida servida. “É uma eterna polêmica essa questão da qualidade e do preço. As universidades federais no passado viviam com carência de recurso. Hoje é tudo bem mais fácil porque tem verba, no meu tempo não”, se defende.
Fonte: Novo Jornal

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Marcos Imperial

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