Foto Canindé Soares
Uma vida romanceada. Assim pode ser descrita a vida de um dos maiores folcloristas brasileiros, falecido às 11h50 de ontem no Hospital Papi, aos 85 anos, por falência múltipla dos órgãos. Deífilo Gurgel nasceu na brisa de Areia Branca, se iniciou poeta, se fez pai de nove filhos, de dezenas de romances ibéricos e da descoberta da chamada "santíssima trindade" do folclore norte-rio-grandense: a romanceira Militana Salustino, o coquista Chico Antônio e o mamulengueiro Chico Daniel, além da redescoberta de Fabião das Queimadas. Já nos últimos quarteirões da vida, só a poesia lhe alegrava. E assim, sem ter muito mais com o que se encantar, dobrou a esquina até encontrar sua última descoberta.
Além de saudades, o folclorista deixa como principal legado suas pesquisas acerca da cultura popular potiguar. Foto: Fábio Cortez/DN/D.A Press |
Deífilo Gurgel passou seis dias vagando entre a inconsciência do mundo real e o universo nebuloso da morte. "Entrei na UTI já às 10h30 para me despedir de papai e ele já estava descansando (inconsciente)", disse o primogênito e também poeta Carlos Gurgel, na última quarta-feira, 1. Desde esse dia o quadro clínico de Deífilo se torno irreversível e a família aguardava apenas o fim. A família rejeitou a possibilidade do velório na Academia Norte-rio-grandense de Letras em razão do espaço pequeno e do caos no trânsito em razão do cortejo. "Pensamos no bem-estar de mamãe e preferimos no Morada da Paz", disse o filho Alexandre Gurgel.
Para o irmão e escritor Tarcísio Gurgel, Deífilo nunca se recuperou da última cirurgia realizada em maio do ano passado, para retirada de um tumor benigno na próstata. "Ele ficou fragilizado desde então e o quadro foi se delineando. Ficou depressivo e vieram as consequências para uma pessoa de 84 anos: já não comia direito, já não reagia. É difícil dizer isso, mas ele já não demonstrava vontade de viver e ficou ainda mais combalido", disse Tarcísio. No sábado retrasado, 21 de janeiro, o folclorista foi internado no Papi com desnutrição e fragilidade. Mesmo consciente e insatisfeito com a internação no hospital, a família preferiu manter Deífílo internado até a alta médica, que não veio.
Pendências culturais
Deífilo Gurgel seria o próximo imortal da ANL na vaga deixada por Vignt-un Rosado. A solenidade de posse estava marcada para este mês, na volta do recesso da ANL. "Quando outros indicados souberam do nome de Deífilo, desistiram de concorrer. Ele seria eleito por unanimidade", disse o presidente da ANL, Diógenes da Cunha Lima. Deífilo também morreu sem ver publicada sua obra literária mais importante: O Romanceiro Potiguar, fruto de pesquisa de dez anos coletando romances medievais pelos rincões e sertões potiguares. O livro já editado pela Fundação José Augusto seria lançado em dezembro, segundo anúncio da assessoria do órgão, e foi reaprazado para depois do carnaval.
Outro projeto pendente é o documentário sobre sua vida, já intitulado DEÍFILO., assim mesmo, com um ponto no final. "Preferi a simplicidade do título porque qualquer adjetivo ou complemento seriam poucos para definir a pessoa do mestre Deífilo", conta o cineasta Fábio DeSilva. No fim de novembroforam gravadas quase três horas de entrevista com Deífilo, em sua residência. Esse material permanece guardado, à espera da conclusão. O filme também aguarda a liberação dos direitos de imagem pela família e a captação de recursos. A intenção inicial do cineasta é produzir um documentário com 52 minutos - formato ideal para veiculação nas principais mídias.
Longevidade otimista
Das últimas entrevistas de Deífilo Gurgel foi publicada em O Poti/Diário de Natal de 14 de agosto de 2011. Nela, o folclorista se mostrava otimista quanto à longevidade e aos projetos futuros. "Fico admirado de estar vivíssimo com essa idade. Meu pai morreu aos 64 com câncer no pâncreas. Minha mãe morreu com 77, de velhice. E do jeito que estou vivo e estribuchando, vou durar mais um bocado", disse aos risos. À época e mesmo meses depois, sua maior alegria era a recitação de poemas. Em qualquer intervalo entre uma frase ou outra, um papo ou outro, vinha um poema; alguns longuíssimos de Ferreira Itajubá, cheios de nostalgias.
A memória de Deífilo talvez tenha sido tão prodigiosa quanto o seu conhecimento do folclore; tão intensa quanto a sua humildade e frieza quando encarava os auspícios da alegria ou as armadilhas da tristeza. Na sobriedade característica, encarava a velhice com alguma indiferença, mesmo tendo sofrido uma ponte de safena e duas mamárias. Na época da entrevista já estava muito magro, com "50e poucos quilos", diferente dos 44 no leito de morte. Ainda assim, projetava: "Penso na segunda edição do meu livro de poemas, acrescentando alguns inéditos. E também a segunda edição do Espaço e Tempo no Folclore Potiguar. De repente pela FJA", disse.
Deífilo comentou de sua maior alegria: "(...) quando descobri Zoraide fiquei emocionado, admirando a beleza dela". As decepções se deram nos cargos burocráticos que ocupou até a forçosa demissão. Foi quando, aos 44 anos, após cinco meses desempregado, casado e com cinco filhos, a cultura lhe salvou: "Estava sentado em um banquinho (...) quando João Faustino me aparece convidando para ser diretor de promoções culturais da FJA".
História de dedicação e persistência
Deífilo Gurgel é um dentro nove irmãos e pai de nove filhos. Nasceu em 22 de outubro de 1926. A brisa areiabranquense moldou sua personalidade infantil. Mas brotou dos serrotes verdejantes de Caraúbas o alumbramento poético adolescente, quando das visitas à casa do avô. A sensação de vislumbre diante daquelas elevações e depressões distintas da paisagem plana de Areia Branca permaneceu até sua morte. Aos 13 anos se muda para Mossoró onde prestou exame de admissão no Ginásio Santa Luzia (hoje Colégio Diocesano).
Concluído o ginasial, vem a Natal em 29 de fevereiro de 1944, aos 18 anos. Concluiu o Clássico no Atheneu, em 1947. Dois anos antes passou em primeiro lugar entre 120 candidatos no concurso público para cargo de datilógrafo no Ipase, aonde chegou à gerência. Foi rebaixado do cargo por questões políticas e, magoado, pediu demissão após oito anos no Instituto.
Foi depois caixa no Banespa, onde passou 17 anos, entre 1953 e 1970. Nesse período, Deífilo se forma em Direito, em 1967. Mas também pediu demissão. "Eu era meio doido nessa época", disse a'O Poti. "Entre 1949 e 1952 teve colaborações publicadas em suplementos literários de Natal e Recife; fundou, em 1956, a revista literária Letra e publicou o seu primeiro livro de poesias, Cais da Ausência, em 1961", escreveu Francisco Fernandes Marinho no livro Deífilo Gurgel, 80 anos de Vida, Poesia, História e Folclore.
Cinco meses após a demissão do Banespa, recebeu o convite de João Faustino para ocupar a direção de promoções culturais da Fundação José Augusto. À época já publicava poemas em jornais. Na FJA mudou os rumos até então travados de ode à cultura erudita e mergulhou em descobrimentos e registros da cultura popular.
Já era 1970. Djalma Maranhão havia sido deportado há seis anos. Quando Deífilo ingressou na FJA, a mulher do governador Cortez Pereira, Aída Cortez, promoveu uma festa natalina com apresentações dos grupos tradicionais dos antigos festejos promovidos por Djalma Maranhão. E Deífilo foi o encarregado da programação. "Quando vi a primeira apresentação do boi de reis de São Gonçalo, veio meu interesse. Me aprofundei no estudo do folclore".
O poeta
Para o crítico, cineclubista e poeta Anchieta Fernandes, Deífilo é autor de uma obra-prima: o soneto A Multiplicação do Peixe, onde à poesia é dada a tarefa de salvar o animal de todas as contingências materiais para projetá-lo apenas como um símbolo plástico de beleza, sem o aprisionamento ao rigor rítmico do decassílabo. "Este soneto, em minha opinião, pode estar em qualquer antologia mundial de sonetos. É um toque perfeito das sementes poéticas que foram jogadas no coração do sonetista pela 'cidade mágica' onde ia passar as férias na infância, a minha cidade Caraúbas", escreveu Anchieta na apresentação do livro escrito por Francisco Fernandes Marinho, dedicado aos 80 anos de Deífilo.
A despeito de uma vida dedicada ao folclore, sendo autor do considerado Espaço e Tempo do Folclore Potiguar, pela criação da Federação dos Grupos Folclóricos do Rio Grande do Norte, pela promoção de festivais de folclore, Deífilo Gurgel começou e terminou na poesia. Seus primeiros alumbramentos literários foram em versos poéticos, ainda de calças curtas em Areia Branca. E já nos últimos meses de vida, confidenciou ao repórter encontrar alegrias no dia ao recitar poesias, via de regra em tons nostálgicos. Em um intervalo e outro de qualquer assunto, lembrava de poemas longos de Ferreira Itajubá. Eram seus preferidos. Também gostava de citar os seus, mesmo os mais antigos, escritos ainda meninote. Fonte: Diário de Natal.
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Marcos Imperial