Por Bruno Cava em Quadrado dos Loucos,
No Brasil, de uns tempos pra cá, pessoas de uma raça diferente
começaram a se fazer frequentes em certos espaços. Começaram a frequentar
espaços outrora inacessíveis: aeroportos, universidades, restaurantes,
shoppings, boates, pet shops. Começaram a fazer turismo, a comer iogurte, beber
vinho, fazer escova progressiva ou cirurgia plástica, a comprar carro,
computador, tablet, tudo o que agora podem e têm direito. Essa raça não se
comporta como os antigos frequentadores gostariam que se comportasse. Essa raça
rude que se agita do fundo da história não quer, simplesmente, ser como seus
antigos senhores. Um escândalo. Os senhores jamais lhe perdoarão o fato de não
reconhecer a eles, a velha e autointitulada “classe média”, o lugar
privilegiado que teriam conquistado com mérito e esforço individual. Pouco
importa aos novos bárbaros, no entanto, o que pensam deles. Eles vieram para
ficar e nada será como antes.
A nova classe média virou um Dasein sociológico. Uma monstruosidade teórica e
prática . As tentativas mais recentes da velha sociologia
alternam uma matemática primária com palpitaria generalizada. Por um lado,
sociólogos orgânicos quantificam e tabelam, para reforçar a numerologia
oficial, tão facilmente convertida em publicidade e campanha nas eleições. Por
outro, tem sempre um “porteiro” que pensa assim, uma “empregada” que faz
assado, os pobres genéricos que o humanismo burguês se propõe a conhecer de
perto, e de onde se elaboram as ilações mais imbecis, decalcadas nos seus
livrinhos de cátedra. À direita, a reedição do argumento das plebes ignaras. O
povão se guia essencialmente por estômago e sexo e, portanto, precisa de
autoridade e moral. Deve ser conduzido no caminho da ordem e do progresso. Ele
mesmo não pensaria de outra forma, se pensasse por si só. Platonismo de madame.
À esquerda, o argumento de que agora é hora de qualificar a nova classe. É
preciso que a raça emergente se eduque para a política séria, que aprenda os
velhos truques e modos, que se conscientize de seu papel. Está muito cru, muito
propensa a ceder aos cantos da sereia. Uma pedagogia de esquerda, igualmente
elitista. Não é por acaso que o jargão que divide esquerda e direita tenha
surgido no âmbito das revoluções burguesas.
Por que a velha classe média
não se sente comprada, quando seus estudos são pagos com dinheiro público, mas
é a primeira a acusar os pobres de se venderem aos governos, pelo primeiro
miserê que conquistaram? Por que bolsas de doutorado não são assistencialismo?
Consideram-se racionalmente desinteressados e inspirados por altos ideais, mas
se tornam histéricos, vitimizam-se, escrevem colunas raivosas nos jornais,
quando ameaçados, em qualquer dimensão, nos privilégios de seu lugar
intermediário. Passaram a história do Brasil pleiteando melhores salários e
condições, e agora não hesitam em tachar os pobres de vendidos, quando estes
podem finalmente votar em que os contempla com renda e acesso. Acusam os pobres
de não saber consumir, mas estão cobertos, da sola dos pés à ponta dos cabelos,
de marcas e produtos. É só vê-los desfilando nos aeroportos, o lugar onde desde
criança aprenderam a exibir os selos de sua casta. Sua parafernália de roupas,
eletrônicos, cosméticos, tratamentos, sessões de análise — nada disso seria
consumismo. Consumista é sempre o outro, que não pode controlar os apetites. É
sempre o outro, o descerebrado que o império capitalista submete com pão e
circo, alienado, estupidificado, mediocritizado.
Quanta falta de generosidade,
de crença nas pessoas, quanto preconceito disfarçado de humanismo e
esquerdismo!
O lulismo não criou uma nova classe. Essa nova classe, — essa
classe selvagem sem nome, suas mil raças consideradas “inferiores” que agora se
afirmam, — é que conferiu as bases materiais para que algo como o evento Lula
ou o lulismo, —
o que de mais democrático e democratizante já aconteceu no Brasil,
— pudesse existir. O governo Lula é uma peça de uma engrenagem maior, um
processo mais amplo e profundo, político e antropológico, e cujo índice mais
visível se situa na franja dos anos 1980, no contexto da fundação do Partido
dos Trabalhadores. O ressentimento coagulado como antipetismo perde de vista
que o evento Lula, com todas as limitações, contradições e paradoxos, foi
exatamente o que não traiu
a configuração de forças nas bases originais do PT. Traíram a composição de
forças que mudou o Brasil nos últimos tempos aqueles que acreditam que a nova
classe deva se filiar à moral deles mesmos, seguir suas referências, ouvir a
sua ciência credenciada. Como se os pobres tivessem alguma dívida com a
Esquerda, o Socialismo ou, suprema piada, o Planeta!
Não adianta tentar convencer
com pedagogias. Muito menos tentar pilotar o monstro. Se o governo Lula pôde
sobreviver aos piores ataques moralistas, e das piores crises do capitalismo de
todos os tempos, foi porque governou junto com o monstro. A reaparição do
mensalão e a crítica moralista sobre a “classe C” tentam a todo custo
desacreditar essa memória de lutas e conquistas. Se tem algo a aprender hoje
com o lulismo, é construir junto com o monstro, sem julgá-lo, sem tentar
enquadrá-lo a velhos esquemas, construir por dentro, de seu estômago, de seu sexo,
de sua rudeza pagã. O governo Lula aprendeu com o monstro. Agasalhou-o, amou e
deixou-se amar por ele.
—–
Devo boa parte do conteúdo deste artigo às conversas com Hugo
Albuquerque, Giuseppe Cocco e Homero Santiago.
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Marcos Imperial