segunda-feira, 17 de setembro de 2012

A nova classe e o lulismo além da esquerda


Por Bruno Cava em Quadrado dos Loucos,


No Brasil, de uns tempos pra cá, pessoas de uma raça diferente começaram a se fazer frequentes em certos espaços. Começaram a frequentar espaços outrora inacessíveis: aeroportos, universidades, restaurantes, shoppings, boates, pet shops. Começaram a fazer turismo, a comer iogurte, beber vinho, fazer escova progressiva ou cirurgia plástica, a comprar carro, computador, tablet, tudo o que agora podem e têm direito. Essa raça não se comporta como os antigos frequentadores gostariam que se comportasse. Essa raça rude que se agita do fundo da história não quer, simplesmente, ser como seus antigos senhores. Um escândalo. Os senhores jamais lhe perdoarão o fato de não reconhecer a eles, a velha e autointitulada “classe média”, o lugar privilegiado que teriam conquistado com mérito e esforço individual. Pouco importa aos novos bárbaros, no entanto, o que pensam deles. Eles vieram para ficar e nada será como antes.
A nova classe média virou um Dasein sociológico. Uma monstruosidade teórica e prática . As tentativas mais recentes da velha sociologia alternam uma matemática primária com palpitaria generalizada. Por um lado, sociólogos orgânicos quantificam e tabelam, para reforçar a numerologia oficial, tão facilmente convertida em publicidade e campanha nas eleições. Por outro, tem sempre um “porteiro” que pensa assim, uma “empregada” que faz assado, os pobres genéricos que o humanismo burguês se propõe a conhecer de perto, e de onde se elaboram as ilações mais imbecis, decalcadas nos seus livrinhos de cátedra. À direita, a reedição do argumento das plebes ignaras. O povão se guia essencialmente por estômago e sexo e, portanto, precisa de autoridade e moral. Deve ser conduzido no caminho da ordem e do progresso. Ele mesmo não pensaria de outra forma, se pensasse por si só. Platonismo de madame. À esquerda, o argumento de que agora é hora de qualificar a nova classe. É preciso que a raça emergente se eduque para a política séria, que aprenda os velhos truques e modos, que se conscientize de seu papel. Está muito cru, muito propensa a ceder aos cantos da sereia. Uma pedagogia de esquerda, igualmente elitista. Não é por acaso que o jargão que divide esquerda e direita tenha surgido no âmbito das revoluções burguesas.
Por que a velha classe média não se sente comprada, quando seus estudos são pagos com dinheiro público, mas é a primeira a acusar os pobres de se venderem aos governos, pelo primeiro miserê que conquistaram? Por que bolsas de doutorado não são assistencialismo? Consideram-se racionalmente desinteressados e inspirados por altos ideais, mas se tornam histéricos, vitimizam-se, escrevem colunas raivosas nos jornais, quando ameaçados, em qualquer dimensão, nos privilégios de seu lugar intermediário. Passaram a história do Brasil pleiteando melhores salários e condições, e agora não hesitam em tachar os pobres de vendidos, quando estes podem finalmente votar em que os contempla com renda e acesso. Acusam os pobres de não saber consumir, mas estão cobertos, da sola dos pés à ponta dos cabelos, de marcas e produtos. É só vê-los desfilando nos aeroportos, o lugar onde desde criança aprenderam a exibir os selos de sua casta. Sua parafernália de roupas, eletrônicos, cosméticos, tratamentos, sessões de análise — nada disso seria consumismo. Consumista é sempre o outro, que não pode controlar os apetites. É sempre o outro, o descerebrado que o império capitalista submete com pão e circo, alienado, estupidificado, mediocritizado.
Quanta falta de generosidade, de crença nas pessoas, quanto preconceito disfarçado de humanismo e esquerdismo!
O lulismo não criou uma nova classe. Essa nova classe, — essa classe selvagem sem nome, suas mil raças consideradas “inferiores” que agora se afirmam, — é que conferiu as bases materiais para que algo como o evento Lula ou o lulismo, — o que de mais democrático e democratizante já aconteceu no Brasil, — pudesse existir. O governo Lula é uma peça de uma engrenagem maior, um processo mais amplo e profundo, político e antropológico, e cujo índice mais visível se situa na franja dos anos 1980, no contexto da fundação do Partido dos Trabalhadores. O ressentimento coagulado como antipetismo perde de vista que o evento Lula, com todas as limitações, contradições e paradoxos, foi exatamente o que não traiu a configuração de forças nas bases originais do PT. Traíram a composição de forças que mudou o Brasil nos últimos tempos aqueles que acreditam que a nova classe deva se filiar à moral deles mesmos, seguir suas referências, ouvir a sua ciência credenciada. Como se os pobres tivessem alguma dívida com a Esquerda, o Socialismo ou, suprema piada, o Planeta!
Não adianta tentar convencer com pedagogias. Muito menos tentar pilotar o monstro. Se o governo Lula pôde sobreviver aos piores ataques moralistas, e das piores crises do capitalismo de todos os tempos, foi porque governou junto com o monstro. A reaparição do mensalão e a crítica moralista sobre a “classe C” tentam a todo custo desacreditar essa memória de lutas e conquistas. Se tem algo a aprender hoje com o lulismo, é construir junto com o monstro, sem julgá-lo, sem tentar enquadrá-lo a velhos esquemas, construir por dentro, de seu estômago, de seu sexo, de sua rudeza pagã. O governo Lula aprendeu com o monstro. Agasalhou-o, amou e deixou-se amar por ele.
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Devo boa parte do conteúdo deste artigo às conversas com Hugo Albuquerque, Giuseppe Cocco e Homero Santiago.

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Marcos Imperial

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