Ainda hoje o trabalho infantil doméstico se confunde com solidariedade e relacionamento familiar em lares brasileiros.
Em 2008, cerca de 320 mil crianças de 10 a 17
anos realizavam trabalhos domésticos, segundo a
Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio - Fotos: João
Roberto Ripper / Imagens Humanas.
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Sem perspectivas no sertão da Bahia,
aos 15 anos, uma retirante chega a Ilhéus para buscar trabalho em casas de
família. Acaba virando cozinheira na casa do árabe Nacib, onde começa
propriamente a história de “Gabriela, Cravo e Canela”, romance consagrado de
Jorge Amado, encenado várias vezes no cinema e na TV. A história de Gabriela, muito viva no
imaginário popular brasileiro, parte de uma situação tão comum para a sociedade
da época que até hoje ainda passa batida para quem se envolve com o livro: o
trabalho infantil doméstico.
Num Brasil bem mais moderno e onde o
trabalho infantil já era proibido, em 2008, cerca de 320 mil crianças de 10 a
17 anos realizavam trabalhos domésticos, segundo a Pesquisa Nacional por
Amostra de Domicílio do IBGE. Em 2001, estudo da Organização Internacional do
Trabalho apontou que mais da metade (64%) das 500 mil crianças
trabalhando no serviço doméstico então recebiam menos de um salário mínimo por
uma jornada superior a 40 horas semanais e 21% tinham algum problema de saúde
decorrente do trabalho.
Ainda hoje o trabalho infantil
doméstico se confunde com solidariedade e relacionamento familiar em lares
brasileiros. Em regiões onde convivem famílias pobres e ricas, é comum a
divisão do trabalho na cidade ou na fazenda se estender à figura do “afilhado”
ou “filho de criação”, geralmente o filho do empregado ou do parente mais pobre
que vai à cidade para “ter mais oportunidades” e cuidar da casa e das crianças
da família.
“O trabalho infantil doméstico é visto
mais como caridade do que como exploração. Isso não mudou”, conta Renata
Santos, pedagoga do programa de enfrentamento ao trabalho infantil doméstico
(PETID) do Centro de Defesa da Criança e do Adolescente (Cedeca-Emaús), em
Belém. Segundo ela, famílias de classe média da capital ainda recebem
mão-de-obra do interior do Estado; no interior, a zona urbana emprega as
crianças da zona rural.
Renata lembra das primeiras reuniões de
conscientização no início do programa, há 13 anos: “Era horrível. Fazíamos
palestras em igrejas e anúncios no rádio para tentar sensibilizar as patroas, e
elas não entendiam”, conta.
Ativo na região metropolitana de Belém
e em quatro outras cidades do Pará, o Petid hoje entrou em sua terceira fase.
“Agora fazemos uma campanha mais incisiva. Antes era uma questão de
sensibilização, de explicar o problema, e agora nós dizemos claramente que quem
emprega mão-de-obra infantil está sujeito a penalidades”, explica Renata.
O trabalho doméstico é tão fortemente enraizado nas
práticas sociais brasileiras que chegou a ser contemplado no Estatuto da Criança
e do Adolescente, instituído em 1990 – o ECA determinava regularização da
guarda do adolescente empregado na prestação de serviços domésticos. Esse
artigo (248) é considerado tacitamente revogado desde 2008, quando o Brasil
aprovou a lista de piores formas de trabalho infantil, proibidas para
adolescentes com menos de 18 anos. Entre elas está o trabalho doméstico.
O ministro Lélio
Bentes, presidente da mais alta corte trabalhista do Brasil, o Tribunal
Superior do Trabalho (TST), reforça a necessidade das campanhas – incisivas,
como diz Renata – de conscientização na área. “Quando se diz que uma criança é
levada ao trabalho infantil para ser protegida, para ter oportunidade de estudo
– isso é balela, é um discurso construído para justificar a exploração”,
afirma. “O que me parece mais eficaz na questão do trabalho infantil doméstico,
sem sombra de dúvida, é a conscientização: as pessoas precisam se indignar com
a violação dos direitos das crianças e dos adolescentes”.
Características e
riscos do trabalho infantil doméstico
Enquanto, em geral, o trabalho infantil
atinge mais meninos do que meninas, quando se trata de trabalho doméstico a
situação se inverte e fica mais aguda: 94% das crianças e adolescentes
trabalhando em casas de família são meninas, segundo a PNAD de 2008.
Com mais de dez anos de experiência no
combate ao problema Renata aponta o que considera o maior problema enfrentado
pelas meninas que trabalham cuidando da casa ou dos filhos de alguém. “A
criança que faz o trabalho infantil doméstico é privada do convívio com sua
família e sua comunidade, não é uma situação natural para ela”, explica.
A OIT cita ainda como os riscos mais
comuns presentes na vida dessas crianças a submissão a jornadas longas e muito
pesadas de traballho, salários baixos ou inexistentes e uma grande
vulnerabilidade ao abuso físico, emocional ou sexual.
Renato Mentes, coordenador nacional do
Programa para Erradicação do Trabalho Infantil da Organização Internacional do
Trabalho (OIT), concorda: “Muitas trabalhadoras domésticas que vêm de uma
situação de trabalho infantil têm um perfil mais submisso e introvertido,
características desenvolvidas por uma criança ou adolescente que assume um
papel de adulto dentro de casa”, afirma. De acordo com ele, uma menina que
presta serviço doméstico dificilmente encontra ou tira proveito de
oportunidades educativas e de desenvolvimento pessoal.
A defasagem escolar de crianças que
fazem serviço doméstico também é muito acentuada, o que também compromete as
perspectivas de futuro. Estudo de pesquisadores das Universidades Federais da
Paraíba e de Pernambuco publicado na revista Psicologia e Sociedade em 2011
mostrou que 80% das crianças que faziam trabalho doméstico já tinham sido
reprovadas; metade dessas crianças atribuíram as dificuldades de desempenho a
dificuldades de relacionamento ou adaptação, e 26% delas citaram expressamente
o trabalho como fator principal.
Hoje, a principal frente de ação do
CEDECA-Emaús no Pará é justamente a escola. “Nossa experiência mostrou que na
maioria das vezes a escola sabe da situação da criança, mas não faz a
denúncia”, afirma Renata.
Por isso, a estratégia da organização
mudou: hoje, oito grupos de jovens, muitos deles ex-trabalhadores domésticos,
fazem ações diretas de prevenção em escolas cujos alunos enfrentam o problema.
Eles dão palestras sobre o tema dos direitos da criança e do adolescente em
escolas, abordam a questão do trabalho doméstico e se aproximam da realidade
das crianças exploradas.
Dificuldade de
fiscalização
Luiz Henrique Ramos Lopes, coordenador
da divisão de trabalho infantil do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE),
admite que o trabalho infantil doméstico é especialmente difícil de se
fiscalizar. “Por causa da inviolabilidade domiciliar, não existe uma ação
fiscal contra o trabalho doméstico como há em outras áreas. Não se pode entrar
na casa de alguém sem um mandado judicial”, explica.
Muitos fiscais, segundo Lélio Bentes,
conseguem fazer a fiscalização em espaços públicos onde a criança trabalhadora
doméstica circula, como feiras, parques e mercados. São raras as vezes, no
entanto, em que criança é encaminhada para a rede de proteção, já que a
regulamentação específica para a fiscalização do trabalho doméstico também é
mais branda; instrução normativa do MTE prevê que os eventuais flagrantes devem
ser tratados com medidas de conscientização, e não propriamente com autuação
dos fiscais. Essa instrução normativa, segundo apurou a Repórter Brasil, está
sob revisão e deve cair.
Por fim, a própria atividade do
trabalho doméstico adulto é alvo de discriminação por parte da legislação
brasileira. O registro de empregados domésticos hoje, por exemplo, não
contempla o recolhimento obrigatório do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço
(FGTS). Também há dificuldades em se aplicar o controle de jornada e fazer
valer o direito a pausas e horas extras, por exemplo. A Convenção 189 da
OIT para o Trabalho Doméstico, que exige a equiparação dos direitos desses
empregados aos dos demais trabalhadores urbanos, aguarda ratificação do Brasil. Fonte: Brasil de Fato.
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Marcos Imperial