Em artigo no Valor,
filósofo Renato Janine Ribeiro condena o movimento incipiente na sociedade
brasileira para que beneficiários do Bolsa-Família sejam impedidos de votar;
proposta de plebiscito feita por Veja no fim de semana sugeriu o tema.
Via 247 - Neste fim de
semana, a revista Veja apresentou sua própria proposta de plebiscito à Nação,
em que uma das sugestões seria impedir o voto de pessoas que recebem
transferências de renda do Estado, como os beneficiários do Bolsa-Família (leia
mais aqui). Hoje, em sua coluna no
Valor, o filósofo Renato Janine Ribeiro aborda a questão. Leia abaixo:
Quem tem medo dos pobres?
- RENATO JANINE RIBEIRO
Nada mais século XIX do que ter medo do voto dos pobres. Nada mais
século XIX, em pleno século XXI, do que conservar esse medo e pretender
privá-los do direito de votar. Numa manifestação recente, uma senhora pediu que
os beneficiários do Bolsa Família perdessem o direito de eleger os governantes.
Essa ideia teve alguma repercussão. É um puro balão de ensaio, que não
prosperará, porque o sufrágio universal é cláusula pétrea da Constituição e uma
emenda neste sentido não pode sequer ser examinada pelo Congresso. Mas vejamos
o que isso significa.
O século XIX descobre a pobreza. Ela existia antes, claro, e em enorme
escala. Mas é depois de 1800 que as grandes cidades, como Londres e Paris, são
tomadas por pobres - gente que vem dos campos trabalhar nas fábricas ou nas
casas, olhando com espanto, e depois com crescente ódio, para quem regurgita de
riqueza enquanto eles passam fome. É o que a historiadora Maria Stella
Bresciani chama de espetáculo da pobreza. Eles formam o que o historiador Louis
Chevalier denominou "classes laboriosas, classes perigosas": os
operários ameaçariam o "statu quo" vigente. Havendo o sufrágio
universal, a maioria de pobres poderia decidir confiscar os bens dos ricos e
reparti-los entre si. Esse é o grande medo do século XIX.
Para fazer-lhe frente, a elite recorre a dois ou três expedientes. Um
deles, que ora funciona, ora não, é deixar o poder executivo nas mãos de um
monarca; mas isso não cabe em regimes democráticos ou semi, como o
norte-americano, o britânico, o francês. Outro é ter um Senado ou Câmara Alta
de espírito conservador, com membros nomeados (os Lordes ingleses, os Pares
franceses) ou eleitos por um mandato mais longo, a quem caberá refrear os
ímpetos da Câmara Baixa, aquela que é eleita pelo povo inteiro. E, finalmente, o voto censitário, ou seja: o
direito de voto dependeria da renda ou propriedade do indivíduo. Pobres
simplesmente não votariam. É célebre a resposta de Guizot, primeiro-ministro de
Luís Felipe, rei da França, quando a oposição lhe pede que baixe as exigências
econômicas para votar: "Enriqueçam-se", diz ele. Ganhem mais, tenham
mais, que poderão votar. No Império do Brasil, era a mesma coisa.
Quais as razões dadas para
restringir o voto a quem tem posses ou renda elevadas? Entendia-se que essas
pessoas seriam mais racionais. Quem vive da mão para a boca nada tem a perder,
portanto, não é controlável. Essencialmente, é isso: vota quem tem a perder. Se
eu sou rico, não quero políticas irresponsáveis, que poriam a perder a economia,
o Estado, talvez a independência de meu país. Se sou pobre, que diferença me
faz? Já tenho tão pouco que qualquer mudança pode ser para melhor. Exigia-se
ter "bens de raiz", sinônimo de propriedade, termo interessante:
somente quem está fixado ("enraizado") na sociedade, com bens ou
rendimentos que ofereçam uma espécie de caução ao que diga ou faça, merece
votar. Os outros, se votassem, não pagariam pelas consequências de seu voto.
Isso mudou por completo ao
longo do século XX. O avanço da causa democrática levou as sociedades a
repudiarem o voto censitário. Negar o voto aos pobres se tornou indigno. Além
disso, quem deflagrou as guerras mais mortíferas do século não foram os pobres.
Se a Alemanha e a Rússia imperiais rumaram para o desastre em 1914, não foi por
iniciativa de seus miseráveis, mas de seus príncipes e nobres, em suma, dos
mais ricos. E os pobres foram, sim, quem mais arcou com os custos dessas
guerras infames. Deles saiu a maior parte dos milhões que morreram em batalha
ou de fome. Mais perto de nós, a crise de 2008 não foi causada pelos pobres ou
beneficiários da previdência social norte-americana. Não há base empírica para
culpar os mais pobres pela adoção de políticas desastrosas.
Hoje, se alguém sugere,
ainda que implicitamente, que pobres não votem, está retomando um imaginário
antigo, arcaico. Na verdade, o século XX, sobretudo em sua segunda metade,
mostrou que não é preciso negar aos pobres o voto para evitar que eles tomem os
bens dos ricos; o circo - isto é, o imaginário do entretenimento - cumpre muito
bem esse papel. Se for somado ao pão, isto é, à supressão da fome e da miséria,
dificilmente os pobres se revoltarão. Isto, se eu quiser dar um argumento de
esquerda. Um argumento mais moderado é: todo aquele que tem futuro - o que
geralmente se chama "família" - se interessa em não o colocar em
risco e, por isso, não apoia políticas irresponsáveis. É quando o trabalhador
passa a ter, em vez de prole, uma família, quando sua renda se torna suficiente
para viver mais tempo e criar filhos, que ele deixa de apoiar revoluções nas
ruas. Daí, por sinal, que alguns radicais culpem a família por um certo
conservadorismo que as classes trabalhadoras assumem.
Mas, de todo modo, é sinal
de deficiência na cultura política a proposta de que perca o direito de votar
quem viva de esmolas - um tema ainda mais antigo, porque grassou no século XVII
inglês. Afinal, um Estado sempre arbitra transferências de riquezas; ele pode
destiná-las aos mais ricos, como fez por milênios, ou começar a transferi-las aos
mais pobres, o que é recente mas, certamente, do ponto de vista moral, não é
pior.
Em minha última coluna
critiquei Marina Silva por deixar passar a eleição de 2010 e as manifestações
recentes, sem organizar sentimentos que tendiam na direção de sua Rede. No
mesmo dia em que saiu a coluna, Marina entrou em contato comigo, por meio do professor
Ricardo Abramovay, querendo conversar, o que fizemos dois dias depois,
longamente. Tratarei do assunto numa futura coluna. Postado por Marcos Imperial.
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