O que os anos recentes de um dos grandes líderes sindicais da década de 1980 contam sobre o Brasil de hoje. Gushiken enfrentou a ditadura, as lutas por seus pares modestos, a justiça
e a mídia predadora.
Montaigne escreveu que o tamanho do homem se mede na atitude
diante da morte, e citava como exemplos Sócrates e Sêneca.
Os dois morreram serenamente consolando os que os amavam. Sócrates
foi obrigado a tomar cicuta por um tribunal de Atenas e Sêneca a cortar os
pulsos por ordem de Nero.
Meu pai jamais se queixou em sua agonia, e penso sempre em
Montaigne quando me lembro de sua coragem diante da morte, confortando-nos a
todos.
Me veio isso ontem à mente ao ler no twitter a notícia de Luís
Gushiken morrera aos 63 anos. Depois desmentiram, mas ficou claro que ele vive
seus dias finais num quarto do Sírio Libanês, com um câncer inexpugnável.
Soube que ele mesmo se ministra a morfina para enfrentar a dor nos
momentos em que ela é insuportável, e para evitar assim a sedação.
Li também que ele recebe, serenamente, amigos com os quais fala do
passado e discute o presente.
A força na morte demonstrada por Gushiken é a maior demonstração
de grandeza moral segundo a lógica de Montaigne, que compartilho.
Não o conheci pessoalmente, mas é um nome forte em minha memória
jornalística. Nos anos 1980, bancário do Banespa, ele foi um dos sindicalistas
que fizeram história no Brasil ao lado de personagens como Lula, no ABC.
Eu trabalhava na Veja, então, e como repórter acompanhei a luta
épica dos trabalhadores para recuperar parte do muito que lhes havia sido
subtraído na ditadura militar.
Os militares haviam simplesmente proibido e reprimido brutalmente
greves, a maior arma dos trabalhadores na defesa de seus salários e de sua
dignidade. Dessa proibição resultou um Brasil abjetamente iníquo, o paraíso do
1%.
Fui, da Veja, para o jornalismo de negócios, na Exame, e me
afastei do mundo político em que habitava Gushiken.
Ele acabaria fundando o PT, e teria papel proeminente no primeiro
governo Lula, depois de coordenar sua campanha vitoriosa.
Acabaria se afastando do governo no fragor das denúncias do
Mensalão. E é exatamente esta parte da vida de Gushiken que me parece
particularmente instrutiva para entender o Brasil moderno.
Gushiken foi arrolado entre os 40 incriminados do Mensalão. O
número, sabe-se hoje, foi cuidadosamente montado para que se pudesse fazer
alusões a Ali Babá e os 40 ladrões.
Gushiken foi submetido a todas as acusações possíveis, e os que o
conhecem dizem o quanto isso contribuiu para o câncer que o está matando.
Mas logo se comprovou que não havia nada que pudesse comprometê-lo,
por mais que desejassem. Ainda assim, Gushiken só foi declarado inocente
formalmente pelo STF depois de muito tempo, bem mais que o justo e o
necessário, segundo especialistas.
Num site da comunidade japonesa, li um artigo de um jornalista que
dizia, como um samurai, que Gushiken enfim tivera sua “dignidade devolvida”.
Acho bonito, e isso evoca a alma japonesa e sua relação peculiar
com a decência, mas discordo em que alguém possa roubar a dignidade de um homem
digno com qualquer tipo de patifaria, como ocorreu. A indignidade estava em
quem o acusou falsamente e em quem prolongou o sofrimento jurídico e pessoal de
Gushiken.
O episódio conta muito sobre a justiça brasileira, e sobre,
especificamente, o processo do Mensalão. A história há de permitir um
julgamento mais calmo, e tenho para mim que o papel do Supremo será visto como
uma página de ignomínia.
Gushiken não foi atropelado apenas pela justiça. Veio, com ela, a
mídia e, com a mídia, o massacre que conhecemos.
Um caso é exemplar.
Uma nota da seção Radar, da Veja, acusou Gushiken de ter pagado
com dinheiro público um jantar com um interlocutor que saiu por mais de 3 000
reais. A nota descia a detalhes nos vinhos e nos charutos “cubanos”.
Gushiken processou a revista. Ele forneceu evidências – a começar
pela nota e por testemunho de um garçom – de que a conta era na verdade um
décimo da alegada, que o vinho fora levado de casa, e os charutos eram
brasileiros.
Mais uma vez, uma demora enorme na justiça, graças a chicanas
jurídicas da Abril.
Em junho passado, Gushiken enfim venceu a causa. A justiça
condenou a Veja a pagar uma indenização de 20 mil reais.
O tamanho miserável da indenização se vê pelo seguinte: é uma
fração de uma página de publicidade da Veja. Multas dessa dimensão não coíbem,
antes estimulam, leviandades de empresas jornalísticas que faturam na casa dos
bilhões.
Não vou entrar no mérito dos leitores enganados, que construíram
um perfil imaginário de Gushiken com base em informações como aquela do Radar.
Também eles deveriam ser indenizados, a rigor.
Gushiken enfrentou, na vida, a ditadura, as lutas sindicais por
seus pares modestos, a justiça e a mídia predadora. Combateu – ainda combate – o bom combate. Postado Marcos Imperial, via http://www.redebrasilatual.com.br
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