As leis aprovadas no governo de Mujica inspiram
caminhos para superar velhos problemas.
Por Salvador Schavelzon, antropólogo,
professor
e pesquisador na Universidade Federal de São Paulo — publicado na edição 79, de setembro de 2013.
O Uruguai é um país com 3,5 milhões de habitantes, com a agricultura e a
criação de gado como atividades econômicas principais, em que se vive um ritmo
calmo de uma população madura. Seu sucesso futebolístico e as praias de
veraneio trouxeram reconhecimento. Além de Carlos Gardel, cujo nascimento é
disputado com a Argentina, músicos como Jaime Ross, Alfredo Zitarrosa e Daniel
Viglietti fizeram brilhar a música uruguaia junto ao ritmo de candombe e as
murgas (espécie de coral) de carnaval, herança afro-uruguaia hoje em vigor.
Agora o país rio-platense chama a atenção do mundo graças ao seu avanço
em leis progressistas. Veremos em que consistem as mesmas, qual é o contexto
político-histórico que permite entender o lugar vanguardista desse país em
várias iniciativas e também quais são os obstáculos para aprovar medidas
parecidas no Brasil.
Leis
progressistas
Logo da chegada à Presidência de José “Pepe” Mujica, ex-guerrilheiro do
Movimento de Libertação Nacional Tupamaros, que passou 14 anos preso durante a
ditadura militar, a primeira lei que chamou a atenção foi a descriminalização
do aborto. A coalizão governista Frente Ampla, pela qual Mujica teve acesso ao
Senado antes de assumir a Presidência, já havia proposto em 2007 um projeto
sobre o tema. Naquela época, entretanto, o presidente Tabaré Vázquez – também
da Frente Ampla – opõe-se ao voto do seu próprio partido. Com Mujica, em 2012,
a lei foi aprovada.
O tema da interrupção da gravidez gerou forte oposição de setores
religiosos, para quem o começo da vida se dá desde a concepção. Ainda
assim venceram os que defendem a regulamentação do aborto, quando ainda não se
atinge etapas avançadas da gestação, a fim de evitar procedimentos
clandestinos, sem condições sanitárias e com frequentes consequências graves
para a mãe, em especial as pertencentes à população pobre. Outro
argumento tem a ver com a importância do planejamento familiar, pelos problemas
sociais agravados por nascimentos não esperados, às vezes produto de estupro,
casos nos quais os religiosos também se opõem. O direito e a liberdade de a
mulher decidir sobre o seu corpo também é um dos argumentos do debate.
Os incentivadores da lei uruguaia propõem que o Estado controle a
realização de abortos em mulheres com até 12 semanas de gestação, além de
educação sexual que seja acessível a todos. Depois de seis meses em vigência, o
ministro da Saúde anunciou de forma auspiciosa que não foram registradas mortes
por interrupções de gestação realizadas com o controle do Estado. O tema
encerrou-se quando a Igreja Católica e os partidos de oposição propuseram um
referendo para derrubar a lei, mas menos de 9% do colégio eleitoral se propôs a
votar. Eram necessários 25% para que seja convocado um referendo obrigatório.
A segunda lei que colocou o Uruguai na vanguarda progressista da América
Latina foi a do matrimônio igualitário, de abril de 2013. A legislação permite
a adoção também aos casais homossexuais e que a ordem do sobrenome dos filhos
seja decidida pelos pais. O Uruguai também fez possível o ingresso de homossexuais
nas Forças Armadas. A Igreja iniciou uma campanha de oposição, similar à
iniciada pelo papa Francisco quando ele era cardeal na Argentina e o governo de
Cristina Kirchner aprovou projeto do mesmo tipo. A opinião de Bergoglio, que
considera o casamento homossexual pecaminoso, contrário à família e aos planos
de Deus, foi citada pela igreja uruguaia.
A terceira lei que fez voltar os olhos para o Uruguai foi a legalização
da maconha, cujas características da legislação a fazem única no mundo. Já era
possível cultivar e possuir a erva para consumo individual, como em outros
países, mas agora o Estado passaria a controlar produção, distribuição e venda.
Como nos casos de aborto, o governo não nega os efeitos nocivos para a saúde,
mas argumenta que as formas tradicionais de lutar contra o consumo e o tráfico
fracassaram.
Coragem
uruguaia
O “experimento” que o país empreende, segundo anunciou Mujica, tem a ver
com uma nova estratégia para combater o narcotráfico e seus efeitos corrosivos
nos aparatos de repressão e na vida carcerária. O presidente explicou que se
trata de não dar as costas a um problema que está perante todos. Aos 78 anos,
Mujica fala às pessoas da sua geração com seu característico linguajar popular
e pede que o país seja valente e não abandone os jovens.
Essas leis permitem aceder a um debate internacional onde assistimos a
crenças e ordens jurídicos em contínua mudança. Há um choque entre posições
conservadoras, em que valores morais ou religiosos se opõem a mudanças, e
posições progressistas. Estas últimas, ora apontam para um avanço de direitos
para superar a discriminação de indivíduos, ora enfatizam a procura de soluções
ante problemas sociais. Outras leis, como a eutanásia, aguardam para ser
tratadas pelo Congresso. Mas nem tudo tem sido vitória para o governo da Frente
Ampla, que sofreu um revés pelo voto negativo num referendo que buscava
derrubar a lei que impede julgar os crimes da ditadura.
Na defesa das leis vemos confluir dois tipos de argumentos aparentemente
contraditórios: um com ênfase no papel interventor do Estado nos problemas
sociais, priorizando os mais desfavorecidos, outro mais liberal, argumentando
contra a regulação estatal na vida das pessoas (homossexuais, mulheres e
usuários de drogas, neste caso). Esses dois avanços atravessam transversalmente
o arco político ideológico e fazem que tanto líderes provenientes da esquerda
socialista, como Mujica, e personalidades mundiais do mundo liberal e
empresarial defendam essas mudanças, como que outros governos da região vindos
da esquerda se oponham.
O debate uruguaio encontra-se assim embaralhado: Mujica é alvo de
críticas conservadoras, pelas leis mencionadas, mas também é criticado por dar
continuidade a políticas econômicas que não favorecem a distribuição da renda e
o acesso à terra, ou que trazem críticas de setores ecologistas.
A
“Suíça” da América
Além das posições políticas rígidas, o Uruguai soube ver que era
possível avançar e mostrou iniciativa. Porém, a sintonia com debates jurídicos
e sociais contemporâneos não deve ser vista como uma questão de oportunismo ou
casualidade conjuntural. Essas políticas possuem antecedentes.
Se revisarmos a história, veremos que o Uruguai era pioneiro em medidas
relacionadas com direitos civis e a democratização da sociedade, o que junto
com a forte estrutura bancária, lhe valeu o título de “Suíça” da América. Entre
as leis vanguardistas está a do Divórcio, de 1907, pioneira entre os seus
vizinhos e inédita em permitir que a separação fosse iniciativa feminina (a
partir de 1913). A recente lei do matrimônio igualitário a modifica, permitindo
também que seja o homem quem toma a iniciativa.
O Uruguai foi também o primeiro país latino-americano a permitir o voto
feminino, em 1927. A primeira votante, curiosamente, foi uma brasileira de 90
anos residente no país. Com uma importante lei de educação que também foi pioneira
em garantir a educação obrigatória, laica e gratuita, o país se converteria no
mais alfabetizado da região, com fama de povo culto e bons índices de
desenvolvimento humano. Em relação direta com o debate atual da legislação da
maconha – que a Frente Ampla afirma que se estenderá a outras drogas – o Estado
uruguaio regulou no princípio do século XX o consumo e venda de álcool,
permitindo que os lucros sejam revertidos em saúde pública.
O presidente Batlle y Ordóñez foi quem incentivou muitas dessas reformas
e, impulsionou leis trabalhistas importantes, e também perfilou um Estado
laico. A tendência de separação entre o Estado e as distintas confissões de fé
marcou a modernidade política da Europa, com reformas religiosas e o avanço do
secularismo, mas ainda é tema de debate por distintas formas de influência da
igreja na política.
O Uruguai se converteu no país mais laico da região com várias medidas
que já levam mais de um século, como a regulamentação e limitação do ensino
religioso, a proibição de crucifixos em hospitais e escolas, eliminação de
capelães das Forças Armadas, reconhecimento do matrimônio civil e o
desconhecimento do religioso, juramento dos presidentes sobre a Constituição.
Apesar de contar com maioria da população de tradição católica, no Uruguai não
há feriados religiosos e o Dia de Reis se chama Dia das Crianças. A Semana
Santa é a Semana do Turismo e o Natal se conhece como o Dia da Família.
Diante da oposição bélica da Igreja nas últimas leis uruguaias, dá para
entender a relação entre sua aprovação e a separação real entre Estado e
religião. O caráter laico, inclusive, foi recentemente demonstrado por Mujica
quando ele decidiu não comparecer à posse do papa Francisco. Depois, numa
viagem em busca de atrair investimentos, Mujica visitou o papa, com quem
comparte um estilo marcado pelos gestos de simplicidade e rejeição aos
privilégios do poder – o presidente viaja em aviões comerciais, utiliza um
velho fusca, doa 90% do seu salário e vive numa pequena casa rural, sem
depender de cozinheiros ou empregados domésticos. Porém Mujica referiu-se em
declarações posteriores à necessidade de “reformar a última corte antiga que
permanece sobre a terra”.
Se compararmos com o Uruguai, vamos nos deparar com as dificuldades de
aprovar leis como as uruguaias no Brasil, devido às relações íntimas entre
política e religião no País. Uma importante bancada parlamentarista evangélica
de 80 membros, transversal aos distintos partidos, impede o tratamento
parlamentar brasileiro desses temas. Basta observar que o casamento entre
pessoas do mesmo sexo só foi legalizado no Brasil pela via judicial. Outro
exemplo do poder de fogo da bancada religiosa foi a suspensão do material
didático do MEC que trazia conteúdos contra a homofobia. É bom lembrar que o
tema droga é conduzido exclusivamente no País pelas forças policiais e
militares.
Apesar de serem calculadas duas mortes por dia no Brasil por abortos
clandestinos, a força dos setores religiosos obrigou Dilma Rousseff e seu
oponente José Serra a declarar-se contra o aborto, convertendo-se no principal
tema do debate no segundo turno das eleições de 2010. Em 2007, Dilma havia
manifestado seu apoio a uma descriminalização do aborto, mas saiu depois
garantindo o “direito à vida”. Procuravam os votos da terceira opositora
concorrente da eleição, Marina Silva, que propôs um referendo sobre o tema,
desde sua oposição ao aborto de acordo com a sua filiação evangélica. Segundo cálculos
do Sistema Único de Saúde, 1 milhão de abortos inseguros acontecem no País por
ano, e um quinto das mulheres já o fizeram alguma vez, sendo a maioria delas
maiores de idade, casadas e religiosas.
Como
a legalização
das drogas, o casamento
gay
e o aborto são
tratados
no debate nacional
Atividades didáticas baseadas na matriz do Enem
1) Investigue o estado da legislação sobre drogas, casamento de pessoas
do mesmo sexo e aborto no Brasil. Houve iniciativas legislativas a respeito?
2) Pesquise em quais lugares do mundo há leis que legalizam as drogas, o
aborto e permitem o casamento entre pessoas do mesmo sexo.
3) Procure o significado e a diferença dos seguintes termos: laicismo,
secularismo, ateísmo, clericalismo, anticlericalismo, integrismo, teocracia.
Competências: Usar saberes históricos para compreender e
valorizar fundamentos cidadãos e democráticos
Habilidades
: Analisar lutas sociais e conquistas no que se
refere às mudanças nas legislações ou políticas. Via ALSO ON CARTA NA ESCOLA.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Olá queridos leitores, bem vindo a pagina do Blog Imperial. Seu comentário é de extrema importância para nosso crescimento.
Marcos Imperial