As palavras de Deng Xiao Ping tornaram-se famosas: "pouco importa a cor do gato desde que ele cace o rato".
Com
a desaceleração do crescimento e a multiplicação dos conflitos do trabalho,
cada vez menos controlados, e das lutas dos camponeses pelos seus direitos, é
possível que no futuro seja cada vez mais difícil "pegar o rato".
Mas, mais do que uma "aterrissagem forçada", são os problemas
sociais, alimentados pela redução do crescimento, que ameaçam a manutenção do
regime político. Por Pierre Salama. Pierre
Salama (*).
Medido pela taxa de câmbio atual, o Produto Interno Bruto (PIB)
por pessoa da China foi multiplicado por um pouco mais de 22 vezes entre 1980 e
2011, passando assim de 220 dólares em 1980 para 4.930 dólares em 2011.
Considerando a taxa que mede o poder de compra, ele foi multiplicado por 33.
Graças a um crescimento muito elevado, durável e pouco volátil, a queda da
pobreza é impressionante. No entanto, o aumento muito rápido das desigualdades
de renda neutralizaram parcialmente os efeitos positivos da alta taxa de
crescimento sobre a redução da pobreza, que prosseguem, mas a um ritmo mais
lento.
A contribuição da China para o crescimento mundial é, há vários
anos, determinante. O desaquecimento atual de seu crescimento é preocupante em
um duplo sentido : traz consequencias sobre o crescimento das outras economias
emergentes e das economias avançadas, e, em segundo lugar, é provável que não
possa ser controlado.
I. A originalidade do modelo chinês
A originalidade do modelo chinês reside em sua capacidade de casar
água e fogo : o mercado e o socialismo. O setor privado se desenvolveu
fortemente. Não há limite às atividades das empresas multinacionais. E o setor
público é muito importante. A sua modernização é financiada por créditos a
taxas de juros bastante reduzidas, liberando-o a praticar uma 'repressão
financeira' face ao setor privado, uma vez que este é obrigado a tomar
empréstimos a taxas de juros mais altas. As empresas públicas se beneficiam de
consequentes subvenções. Protegidas por medidas administrativas e pela
manutenção de uma taxa de câmbio desvalorizada, os preços dos produtos
manufaturados são cada vez mais livres.
A liberalização é, contudo, menos importante para os bens
intermediários que se beneficiam de numerosos subsídios. Ela é restrita aos
fatores de produção, especialmente no que concerne às matérias primas, às
condições de empréstimo e de trabalho, cujos preços são mantidos em um nível
baixo.
Enfim, a China pode ser caracterizada pelas facilidades concedidas
às empresas estrangeiras – com o objetivo de se apropriar das tecnologias mais
recentes -, por um certo protecionismo, via a manutenção de uma taxa de câmbio
depreciada e a exclusão de facto das empresas estrangeiras dos processos de
compras públicas.
A originalidade desse modelo se funda :
Sobre a articulação das forças sociais sob a égide do Partido
Comunista : empreendedores dos setores públicos e privados pertencem
frequentemente ao PC ; mundo do trabalho com suas diferenciações cada vez mais
fortes entre campo e cidade, trabalhadores qualificados e não qualificados,
trabalhadores residentes e trabalhadores migrantes das zonas rurais (« mingongs
») sem permissão se beneficiam muto pouco de vantagens sociais. Estes últimos,
muito numerosos (cerca de 260 milhões), estão concentrados nos empregos não
qualificados e particularmente duros.
- Sobre a capacidade do Estado central em manter um controle sobre
os governos das províncias e sobre a concentração política e a manutenção de
uma autonomia muito relativa face ao poder central.
- Sobre um crescimento elevado de maneira a legitimar a manutenção
de um regime autoritário, apesar da distribuição particularmente desigual dos
frutos desse crescimento e o aumento da corrupção.
A intervenção massiva do Estado, em geral indireta, a
vulnerabilidade dos empreendedores privados e públicos, a corrupção, a
superexploração dos trabalhadores, especialmente dos « ilegais », são
particularidades desse modelo [1]. Na verdade, estamos diante de um
duplo processo de acumulação primitiva, o primeiro, no sentido de Marx com o
afluxo de camponeses pobres nas cidades, e o segundo mais complexo com a
espoliação dos poupadores por taxas de juros muito pequenas, e mesmo negativas,
e a disponibilidade de crédito a baixas taxas de juros para empresas
selecionadas, públicas e privadas.
II. Um conjunto de fatores desfavoráveis joga em favor de uma
desaceleração mais pronunciada da atividade econômica
1 – As perspectivas de forte crescimento das exportações são menos
favoráveis do que já foram, ainda mais que é cada vez mais difícil passar de
uma especialização baseada na exportação de produtos com baixa intensidade
tecnológica para exportações de produtos mais sofisticados, com maior valor agregado.
Essa transição encontra dois obstáculos dificilmente superáveis : com a
globalização, é mais difícil se opor à explosão internacional da cadeia de
valor ; a ausência de controle das novas tecnologias, especialmente aquelas
ligadas à telecomunicação e à informação (ITC), e de domínio dessas tecnologias
tornam mais difíceis, embora não impossíveis, as estratégias nacionais de
crescimento das exportações e de integração das linhas de produção.
2 – Passar de um modelo de desenvolvimento a outro a partir da
dinâmica do mercado interno não é fácil, apesar da expansão das classes médias.
Os salários cresceram em média mais rapidamente que a produtividade do trabalho
desde 2009, mas a parte do consumo no PIB e sua contribuição para o crescimento
cresceram ainda de forma muito fraca. O aumento dos custos do trabalho, seguido
ao das receitas, com uma taxa de crescimento da produtividade do trabalho dada,
diminui a competitividade das empresas que utilizam muita mão de obra. Além
disso, a expansão do consumo pode vir de uma diminuição da poupança. A poupança
importante das famílias – explicada por comportamentos de precaução, ligados
aos custos da saúde, da educação, às pensões insuficientes [2], às
incertezas sobre o emprego – pode diminuir se houver mecanismos de socialização
mais importantes necessitando uma alta sensível das despesas sociais do Estado.
3 – Uma grande parte dos investimentos é dirigida para a
construção de infraestruturas importantes. Trata-se de um pré-requisito para um
crescimento durável e sua insuficiência explica as dificuldades de manter uma
taxa de crescimento consequente tanto no Brasil como na índia. Mas na China
esses investimentos estão, em grande parte, na origem da multiplicação de
créditos duvidosos, fragilizando os bancos. A priori, poderia-se considerar que
o risco financeiro e bancário ainda não é muito elevado na China, apesar desses
créditos duvidosos. O volume de créditos em relação ao PIN alcançou 154% em
2012, uma cifra menor do que a que apresentava os Estados Unidos na véspera da
crise de 2007 (224%), ou do que a que tinha o Japão antes de suas dificuldades
em 1989 (239%).
É preciso levar em conta ainda os produtos financeiros complexos,
ou seja, o conjunto das « shadow banking activities » realizadas
pelas instituições financeiras, muito pouco controladas pelas autoridades
monetárias, e suas relações no sistema bancário. Essas atividades cresceram
cerca de 62% entre 2008 e 2012 e, se as levarmos em conta, a relação do
conjunto dos créditos passa de 145%, em 2008, para 207%, em 2012, segundo dados
da agência Nomura. O risco de uma crise financeira capaz de provocar uma
«aterrissagem forçada » é, portanto, mais elevado do que parece quando levamos
em conta as atividades envolvendo esses produtos complexos.
4 – As taxas de investimento muito elevadas (43,5% em 2010)
acarretam custos adicionais provenientes das capacidade de produção ociosas
importantes. Com tais taxas, a eficácia do capital tende a cair, sobretuso nas
empresas do Estado e no setor imobiliário fragilizado pelo estouro possível de
uma bolha especulativa.
5 – O controle dos conflitos sociais e a manutenção da supremacia
do Partido Comunista chinês é tanto mais problemática na medida em que a
opacidade das decisões governamentais é grande e a corrupção em todos os níveis
é importante.
As consequências de uma desaceleração da atividade econômica sobre
os preços internacionais de matérias primas e os volumes de comércio já começam
a ser sentidas pelas economias emergentes latinoamericanas e por numerosas
economias africanas. Se o crescimento da China cair fortemente, as
consequências econômicas para esses países, assim como para os países
avançados, serão ainda mais importantes, o que reduziria o crescimento das
exportações da China.
Conclusão
Mais do que uma « aterrissagem forçada », são os problemas
sociais, alimentados pela redução do crescimento, que ameaçam a manutenção do
regime político. Sem poder assegurar um processo de aumento forte de renda e de
deiminuir as desigualdades de renda, o governo busca prevenir os problemas
sociais cogitando ceder sobre algumas questões qualitativas : reconhecimento do
direito de propriedade de camponeses, reconhecimento do fundamento de algumas
reivindicações dos trabalhadores, implementação de um sistema de seguridade
social, proteção do meio ambiente fortemente degradado, e, enfim, « luta »
contra a corrupção atingindo o pessoal político e os quadros de empresas em
todos os níveis.
Para os economistas e estudiosos da política chinesa, o regime
autoritário não se funda sobre uma legitimidade ideológica, mas sobre sua
eficácia. Lembremos então das palavras de Deng Xiao Ping : « pouco importo a
cor do gato desde que ele cace o rato ». Com o desaquecimento do crescimento e
a multiplicação dos conflitos do trabalho, cada vez menos controlados, e das
lutas dos camponeses pelos seus direitos, é possível que no futuro seja cada
vez mais difícil « pegar o rato ».
(*) "Professor Emérito - Universidade Paris Norte e
economista do CNRS".Página do autor.
Notas
[1] No entanto, os salários aumentaram fortemente nos
últimos anos na China. Segundo a OIT (2012, p.25), a taxa de crescimento médio
anual dos salários foi de 13% entre 1997 e 2007 e de 11% entre 2008 e 2011,
enquanto a taxa de crescimento médio da produtividade foi de 9% e de 8,5% nos
mesmos períodos. As desigualdades salariais aumentaram, os salários dos
trabalhadores não qualificados e mais particularmente os dos migrantes «
ilegais » cresceram menos rápido que a taxa de crescimento da economia, sendo
que a reserva de mão de obra não é ilimitada.
[2] Lembremos que a relação de dependência cresce
fortemente por causa do aumento da expectativa de vida e da política de filho
único.
Referências bibliográficas : em francês: Aglietta M.,
Bai G. (2012) : La voie chinoise, capitalisme et empire, Odile Jacob ; Bergère
M.C. (2013) : Chine, le nouveau capitalisme d’Etat, Fayard ; Araujo H. et
Cardenal J.P. (2013) : Le siècle de la Chine : comment Pékin refait le monde à
son image, Flammarion ; Salama P (2012) : Les économies émergentes
latino-américaines, entre cigales et fourmis (six chapitres sur huit analysent
le modèle chinois en le comparant aux modèles latino-américains), Armand Colin.
Em inglês : Borst N. (2003): “Shadow
deposit as a source of financial instability: lessons from the american
experience for China”, Peterson Institute (1-12); Walter A., Zhiang X. (2012):
East Asian Capitalism, Diversity, Continuity and Change, Oxford; Zhuang I.,
Vandenberg P. et Huang Y. (oct 2012): Growing beyond the Low-cost Advantage,
Asian Development Bank; Yifu Lin (2011): Demystifing the chinese economy,
Cambridge; Yueh L (2013): China’s growth: the making of an economic superpower,
Oxford. Tradução: Marco Aurélio
Weissheimer. Fotos: http://asiapacifico.utadeo.edu.co
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