André J. Gomes, Revista Bula
"Então um dia o mundo, ocupado com o que
realmente importa, num momento de divina iluminação, há de reunir sem maior
espalhafato não uma comissão de notáveis das ciências e da política, nem um
séquito de respeitosos acadêmicos e pensadores superdotados, mas uma turma
desprendida, formada por pessoas de modos simples, representando diferentes
origens, profissões, faixas etárias e níveis sociais variados. Entre essa
gente, nada além de dois ou três interesses comuns, coisas como a inutilidade
das conversas à toa, a profundidade dos assuntos desconhecidos e, claro, a
alegria incomparável de dar e receber amor.
A esse grupo se
daria o nome de Assembleia Geral das Mãos Unidas, ou, quem sabe, Encontro
Internacional das Almas Simples, e seus integrantes se reuniriam sem a menor
pretensão de deliberar e votar e construir graves e definitivas considerações a
respeito das coisas universais, mas tão somente para comer e beber
e falar de suas lembranças e de seus sonhos.
Conversariam
sobre os perfumes inconfundíveis de seus avós, a importância de seus pais e de
seus filhos e seus amigos. Abririam parênteses e aspas sobre seus pequenos
feitos históricos, suas saudades e seus projetos. Fariam largas digressões
sobre suas intenções sagradas, suas ternuras descobertas e seu dia depois do
outro. Essas pessoas se encontrariam para nada senão para falar de seu gosto
pela vida e celebrar o milagre, o mistério, a alegria e a graça divinas de
estarem vivas.
De seu encontro à toa, realizado numa tarde
qualquer de uma semana esquecida no calendário, sem grandes feriados ou
comemorações relevantes, essa gente proclamaria, com a despretensão suprema dos
desavisados de consciência limpa e coração saudável, a Declaração Universal dos
Direitos e Deveres de Amar.
Seu artigo primeiro e único diria, com deliciosas
delongas e rodeios inspirados, que a vida é boa demais para quem descobre o
óbvio: o amor borbulha em todo lugar, de toda ordem, a qualquer tempo, e atinge
em cheio todo e qualquer ser sensível. Mulheres, homens, cachorros, elefantes,
passarinhos, baleias-cachalote. O amor está para além de qualquer convenção.
Entre mordidas em pães doces e longos goles de
suas bebidas favoritas, nossos humildes representantes constatariam que há quem
ame o que não se compreende e quem não compreenda o amor. É compreensível. Para
uns, amar é deixar os sentimentos livres, abrir as gaiolas, soltar as coleiras.
Para outros, é manter tudo em casa, por perto. Para fulano é não ter regras,
para beltrano é manter as rédeas. E para sicrano? Para ele o amor ainda não
chegou. Isso também acontece. Mas uma coisa é certa, diriam nossos declaradores:
o amor não tem manual de instruções. No entanto, ainda assim, amar implica
direitos e deveres.
Nossos embaixadores anotariam emocionados, em
grandes folhas de cartolina ou em largas paredes brancas, que no amor, assim
como em tudo na vida, os direitos e os deveres são almas gêmeas inseparáveis,
amantes encantados que jamais se largam, um não existe sem o outro. E quando se
separam já não há mais amor, mas qualquer sentimento distinto, tacanho e
farsante.
Nos seus escritos, lá estaria em letras inconfundíveis:
a quem ama, é dever olhar o outro assim como a si mesmo, com ternura e afeto e
generosa confiança. É seu direito declarar amor a qualquer tempo, tanto quanto
se lhe assegura o benefício de ficar em silêncio absoluto de quando em vez, de
se trancar em si mesmo quando bem queira. Como um segurança de banco se isola
no interior de sua guarita a prova de balas, protegido do tiroteio aqui fora.
Como um líder de Estado se esconde em seu bunker esperando a guerra que nunca
fará sentido.
Quem ama tem o direito de se dar e o dever de
nada pedir em troca, mas de trabalhar empenhado na construção de um sentimento
que se estenda ao outro naturalmente, sem cativeiros e correntes e obrigações
impostas. Tudo isso estaria lá, impresso em nossa declaração de amor singular e
universal.
Lá estaria escrito que é direito de cada um
deixar o amor entrar quando queira. E é seu dever assisti-lo acontecer em um
tempo próprio, rápido feito um disparo ou lento tal qual um velho vendedor
ambulante, o passo manso, parando aqui e ali em conversas à toa, como quem
interrompe uma frase no meio.
Nosso documento universal traria lavrado e
atestado que os amantes têm o direito de anunciar seu amor ao mundo e fazer
inveja aos outros. Mas têm o dever de respirar fundo a tristeza e ouvir com
calma, no quarto de um motel sem alma, na sala fria de uma terapeuta de casais
ou na área de serviço de um pequeno apartamento: “eu não gosto mais de você”.
É dever de quem ama aceitar o fim. E que no fim
lhe seja guardado o direito ao recolhimento. Que quando preciso cada um se
permita esperar no seu canto em merecida mudez, escrevendo cartas a Deus e todo
mundo, na mais humana tentativa de combater a tristeza caprichosa que ora
irrompe robusta, em enxurradas de choro e avalanches de angústia e desamparo,
ora goteja seu chuvisco úmido e melancólico de mágoa.
Quem tem o direito de amar tem o dever da
compreensão pura e simples: o amor também pode acabar. Aí só há de restar o
adeus e um até breve confiante em seu próximo encontro dia desses, na esquina
dos pensamentos soltos, com o respeito devido a quem lhe foi tudo na vida e um
dia há de ser somente uma lembrança tranquila e doce.
Nossos embaixadores humanos falariam e ouviriam e
celebrariam até tarde, com risos e lágrimas, o trabalhoso ofício de viver e de
amar, encerrando seu documento com a frase: “aceitas e respeitadas todas as
impressões em contrário”.
E que assim, estabelecidos os modos e ajeitados
os pingos em cada i, sejamos enfim tomados por uma coragem simples e imperiosa
de assumir o que somos: naturais detentores do divino direito e do sagrado
dever de dar e de receber amor."
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Marcos Imperial