"Um dia meu avô
paterno veio nos visitar e descobriu que eu gostava de inventar coisas de
escrever. Ele ficou tão animado que levou meus versos e publicou no jornal da
cidade dele, na seção infantil. Eu tinha 12 anos. Logo depois disso, eu parei
de brincar de escritora e essa história foi totalmente esquecida. Porém, outro
dia, encontrei o caderno de mais de 20 anos com aqueles escritos e senti uma
saudade danada desse meu avô.
Salvador Bedone era o
nome dele. Dono de um humor característico de vovô divertido e de uma
simplicidade de gente interiorana, ele se sentava no chão para brincar com os
netos. Ficava para cima e para baixo com a gente. Íamos ao clube do qual ele
era sócio, passeávamos na praça e tomávamos sorvete.
Meus irmãos, minhas
primas e eu ficávamos loucos no parquinho onde ele nos levava, pegávamos tanto
embalo em um tal de balanço jacaré que até hoje não sei como alguém não saiu
voando dali.
Meu avô era inteligente, um homem culto,
que gostava de ler romances e ouvir músicas clássicas. Ele adorava
piano. Uma vez o convidei para assistir a uma audição do conservatório, onde eu
estudava, e toquei “Apanhei-te Cavaquinho”, um chorinho que foi bem difícil
decorar — naquela época eu tinha 14 anos e estava apaixonada por choros,
descobrindo “Tico Tico no Fubá” e o repertório de Zequinha Abreu. Quando desci
do palco, depois que meu avô me deu os parabéns, ele não resistiu e disse que
estava esperando que eu tocasse uma música clássica.
No ano em que eu estava fazendo cursinho
para o vestibular, fiquei uma semana nacasa dos meus avós. Eram
férias de julho e eu estava muito angustiada, estudandotanto e com medo de
não entrar na faculdade. A vovó cozinhava todos os dias para mim, tudo o
que eu pedia. Todo dia, no final do expediente de estudo da tarde, o vovô e eu
saíamos para caminhar.
Andávamos pelas ruas
até chegarmos a uma pista de caminhada. Meu avô contava suas histórias e eu
gostava de ouvir. Naquela época, ainda não percebia, mas o meu avô estava
caminhando comigo para vencer as dificuldades.
Esses dias, peguei o
caderno e li aquele poema que meu avô gostou. Já fazia algum tempo, mas fui até
o piano e toquei “Noturno”, de Chopin, para o vô Salvador. Enquanto
desenferrujava meus dedos, contei ao vovô que a menina está escrevendo de novo,
e que ela queria mostrar a ele os seus escritos.
Então a saudade ficou
passeando aqui dentro, indo e vindo, como no balanço do parquinho. E toda vez
que a lembrança veio mais forte, dançando pelos acordes, pedi a ele que
continue caminhando comigo pelos descompassos da vida.
A vida é mesmo um
grande vestibular. A gente cresce e vai seguindo pelo caminho, estuda e aprende
a melhorar os nossos próprios limites, porque é preciso seguir batalhando e
passar por todas as provas que se fizerem necessárias. Então, vai sonhando e
tentando, vai tocando e levando, mas não longe do chorinho. Um dia a gente
sempre chora.
Chora porque o coração
é um pandeiro que vive perdendo a sua cadência. A gente chora porque tem
carências, porque é difícil ficar sozinho e sentir saudade. Chora-se da falta
de sentido das coisas e apanha-se com a distância, da frieza e por nada.
Fica-se no escuro, mudo, de todas as dúvidas. Perde-se o tom da melodia. Vai-se
o ritmo da canção e toda inspiração. Por ironia, dessa morte, teme-se a saída.
Nessas horas, sem saber o que tocar, nem
qual estrada pegar, viver — do jeito que der agora — já pode ser uma
entrada. A gente sempre quer respostas imediatas, mas não adianta procurá-las
enquanto o próprio amor estiver adormecido, enquanto a música silenciosa d’alma
espera pra ser ouvida. Vai, vamos! Vamos dar aquele toque no pandeiro que trará
o novo tum-tum-tum a esse coração!
Sim, porque, como disse Fernando Pessoa,
temos em nós “todos os sonhos do mundo”. Mesmo que não seja fácil, olhe. Onde
há tristeza, há também esperança. A gente se despede do pôr do sol com
nostalgia nos olhos, mas recebemos a beleza nas cores do crepúsculo anunciando
a chegada da noite enluarada.
É como atravessar a dor
no abraço do avô que nos tranquiliza quando temos que seguir em frente. Triste
também é feliz no poema desbotado através do tempo, ainda sonhando as coisas
que não existem."
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Marcos Imperial