Em
novo livro, sociólogo e presidente do Ipea critica cientistas e classe média
tradicional.
Jessé de Souza, presidente do Ipea,
lança “A tolice da inteligência brasileira” - Adriana Lorete.
RIO
- Depois de dizer que os 40 milhões de brasileiros que ingressaram no mercado
de consumo nos últimos anos não formavam uma classe média - como então
alardeava o governo -, Jessé Souza, que assumiu a presidência do Instituto de
Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) em abril, promete mais polêmica com o livro
"A tolice da inteligência brasileira", que chega às lojas nos
próximos dias. Nele, o sociólogo afirma que o Brasil não tem uma classe alta,
mas sim uma "classe de endinheirados".
E
argumenta que a classe média tradicional, além de conservadora, é tola e assume
o papel de guardiã da moralidade para compensar seu medo da ascensão dos mais
pobres, seu ressentimento com o sucesso dos mais ricos e ficar com a
consciência tranquila diante da exploração que ela mesma pratica diariamente.
"A classe média explora os mais pobres - e no Brasil essa exploração é uma
espoliação absurda - mas finge que é boazinha, afinal de contas, a empregada
doméstica é quase da família", diz o presidente do Ipea, órgão que é
subordinado ao Ministério do Planejamento.
O
GLOBO: O título do seu livro é bastante provocativo. Quem é a inteligência
brasileira e onde está sua tolice?
SOUZA:
No fundo é uma crítica aos grandes sociólogos do país e à forma como foi
montada a Ciência Social no Brasil, mostrando como desde o início houve menos
compromisso com cientificidade e mais com a política. É muito problemático
quando há uma colonização do interesse da política, como ocorre aqui, um
culturalismo conservador que idealiza os Estados Unidos e cria uma imagem
negativa do Brasil. É a tolice da inteligência, dos nossos grandes pensadores,
dos especialistas, que estão engolindo uma concepção de inferioridade do
brasileiro, supondo que existem sociedades perfeitas, onde não há corrupção.
Esses autores todos criaram uma ideia, que é assumida por todos nós, do
brasileiro definido pela sua desonestidade e corrupção. E uma visão do Estado
se opondo ao mercado, sendo ineficiente, enquanto o mercado é o reino de todas
as virtudes. A noção de corrupção foi construída paulatinamente no Brasil e
sempre pode ser despertada. Ela pode estar adormecida e ser acordada, porque
faz parte do patrimônio cultural do Brasil.
Essa
leitura está errada? O Estado, no Brasil, não é corrupto?
A
questão não é o Estado ser ou não corrupto. Claro que é bom que não seja, é
importante que seja transparente e não seja corrupto. Mas essa é a meia
verdade, porque nem de longe é a questão principal. Todos os Estados do mundo
são aprisionados por interesses privados. Nos EUA, o Estado é extremamente
privatizado, segue os interesses das grandes empresas, o Exército americano
mata muita gente no mundo para proteger interesses de empresas. O Estado é
sempre privatizado. A questão é: por quem? Ou ele é privatizado por uma minoria
ou é posto a serviço da maioria. Quase nunca no Brasil o Estado foi posto a
serviço da maioria. Eu me lembro de dois momentos históricos, no governo de
Getúlio Vargas e no período Lula-Dilma, quando os recursos foram usados também
para promover a ascensão das classes populares.
No
momento, o senhor acha que o Estado está a serviço da maioria?
Está
numa encruzilhada, porque o Estado não tem uma vontade. A sociedade manda no
Estado. Se a sociedade brasileira der uma guinada conservadora, o Estado vai
ter que acompanhar. E, em grande medida, quem confere argumento para essa
guinada conservadora é a leitura dessa pseudociência. Ela monta um jogo de
oposição entre mercado e Estado, que não é verdadeiro, porque não se trata de
uma luta, os dois vão juntos, um depende do outro. Mas essa oposição é
dramatizada, e a questão é: isso serve a quem?
E
por que de repente esse "drama" veio à tona com força?
Veio
agora porque antes tinha um cenário muito favorável, todos ganhavam. Num
contexto, onde começa a ter escassez, é aquela história: "farinha pouca,
meu pirão primeiro". Então todos os setores que sabem que não têm como dar
benefícios para todos querem voltar ao velho esquema do Estado privatizado pelo
interesse de uma minoria. E conseguem isso demonizando o Estado. Foi assim na
época de Getúlio Vargas, na época de João Goulart e na época de Lula e Dilma.
Isso é fato.
O
senhor está traçando o cenário atual como de um pré-golpe?
Tem
uma tentativa óbvia de golpe que articula os mesmos elementos de todos os
golpes anteriores. Esse nível de corrupção só pode ser mostrado agora, porque
antes todas as investigações eram engavetadas e agora as coisas são levadas até
o fim. Mas isso está sendo usado, numa dramatização, para o enfraquecimento do
Estado, porque, numa sociedade conservadora como a nossa, qualquer ajuda
efetiva para as classes populares é vista como um crime pela elite. E nossa
classe média tem uma parte que é extremamente conservadora e não gostou da
ascensão da classe popular, não gostou de o pessoal estar andando de avião, da
meninada da periferia ir ao shopping. Isso não é racional, tem a ver com afeto,
com o medo de que as pessoas que estão ascendendo tomem seu lugar, seus cargos,
medo que seus privilégios sejam tocados. Quantas pessoas reclamam porque a
empregada doméstica tem alguns poucos direitos e não podem mais usá-la como
escrava?
A
classe média teme a redução da pobreza e da desigualdade?
A
classe média tradicional teme a ascensão dos que estão embaixo e tem
ressentimento contra quem está em cima. Vai sempre dizer que a pessoa fez
alguma coisa errada para chegar lá em cima, quase sempre com a ajuda do Estado.
Ela é uma santa a vida toda, até porque nunca esteve em cargo de poder onde sua
honestidade vai ser testada. Ela se põe como a guardiã da moralidade. A classe
média exporta o mal, o mal está sempre fora. E explora os mais pobres - e no
Brasil essa exploração é uma espoliação absurda - mas finge que é boazinha,
afinal de contas, a empregada doméstica é quase da família. E, assim, exime-se
da responsabilidade, como se o mundo fosse assim mesmo e você não tivesse nada
a ver com essa exploração de classe que pratica diariamente. E como essa
exploração é escondida, porque a ciência não tematiza, nem a empresa, nem a
escola, nem a universidade, você fica cego em relação a sua parte na
perversidade, na maldade, na exploração dos mais pobres e no abandono dos mais
frágeis. E aí adquire a coisa que todos os seres humanos querem tanto quanto um
prato de comida, que é a boa consciência, a capacidade de legitimar a vida que
você tem, dizer que está ali por merecimento. Ela tem essa necessidade afetiva
que vai ser satisfeita por um discurso que se torna dominante, mas permite que
ela seja manipulada quando a época histórica convém.
Como
foi a reação da classe alta?
Há
um incômodo da elite também porque ela não percebe o mundo de modo diferente da
classe média. No Brasil, não temos uma classe alta no sentido europeu do termo,
temos a classe dos endinheirados. Pense no Eike Batista botando a Mercedes dele
na sala. Jamais alguém de classe alta da França ou na Alemanha faria isso. Essa
classe dos endinheirados também ficou incomodada. Apesar de isso ter sido bom
para todo mundo, todo mundo ganhou, fortaleceu o mercado interno, a mudança
social que aconteceu no Brasil gerou uma série de ressentimentos. A gente tem
que ter a coragem de apontar isso. A desigualdade brasileira foi sempre
cuidadosamente escondida, a ciência que a gente estava criando nunca pôs a
desigualdade no centro das preocupações. Ao contrário, invisibiliza a
desigualdade, torna invisíveis as causas e faz parecer que é por burrice ou
preguiça que se é pobre.
A
desigualdade é mais grave do que a corrupção?
Sem
dúvida alguma, a desigualdade é mais grave que a corrupção, é de longe a
questão mais importante. Obviamente o combate à corrupção, a transparência nos
negócios públicos são virtudes republicanas fundamentais a qualquer democracia.
O problema é a corrupção ser manipulada politicamente para legitimar interesses
que não podem ser expressos de modo direto. A corrupção tem que ser combatida
como um fato cotidiano. Quando isso acontece nos outros países, não leva ao
drama político, a esse carnaval todo. É o jogo de estar cuidando do interesse
da maioria, de limpar o país, enquanto as pessoas continuam sofrendo.
Como
avalia o resultado da Pnad, que foi divulgada sexta-feira?
Os
dados recentes frustram os que achavam que o Brasil passaria por um retrocesso
social inevitável com a crise econômica. Os números mostram, por exemplo, que a
desigualdade continua caindo e a renda real do trabalho continua subindo.
Também o analfabetismo continua caindo, e tudo indica que continua a haver uma
melhora nas condições estruturais de vida da nova classe trabalhadora que
ascendeu nos últimos anos, ou seja, do segmento que já havíamos estudado
empiricamente e denominamos de "batalhadores brasileiros". O problema
se dá nos aspectos conjunturais, especialmente no mercado de trabalho, onde o
desemprego aumentou. Tudo combinado mostra que o modelo de desenvolvimento com
ascensão social dos mais pobres não está liquidado. Mostra, inclusive,
extraordinária capacidade de resistência.
O
que o senhor vê para o futuro?
A
gente está numa encruzilhada onde há oportunidades e desvios. A gente pode
fazer a mesma coisa que fez a História do Brasil no século XX, ceder ao
golpismo, à possibilidade de as pessoas poderem mandar sem o voto. Ou a gente
repete isso e os endinheirados e poderosos voltam a mandar sem terem sido
eleitos, ou faz um processo de aprendizado, de mudar essa história. As duas
hipóteses são possíveis.
Leia
mais sobre esse assunto em http://oglobo.globo.com/economia/a-desigualdade-mais-grave-que-corrupcao-18054916#ixzz3sP4DR8mZ
©
1996 - 2015. Todos direitos reservados a Infoglobo Comunicação e Participações
S.A. Este material não pode ser publicado, transmitido por broadcast, reescrito
ou redistribuído sem autorização.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Olá queridos leitores, bem vindo a pagina do Blog Imperial. Seu comentário é de extrema importância para nosso crescimento.
Marcos Imperial