Nos últimos
anos, foi possível observar ministros indicados para o Supremo que se mostraram
capazes de acumular uma tradição estranha. Depois de empenhar-se noite e
dia, de modo incansável, para conseguir a indicação do Planalto, acomodavam-se
numa postura convencional no tribunal, sem demonstrar o mesmo apego pelos
princípios de Direito empregados para justificar sua candidatura, e que muita
vezes cobravam uma postura de independência e mesmo coragem pessoal.
Ao realizar uma
intervenção contra a vergonhosa manobra inconstitucional de Eduardo Cunha para
assegurar que a oposição assumisse a direção política dos debates sobre o
impeachment na Câmara, permitindo um indecoroso viés político a um processo que
deve ser conduzido com isenção e imparcialidade, o recém-chegado Edson Fachin
teve uma atitude a altura das 12 horas que enfrentou na Comissão e Justiça do
Senado, em maio.
Facchin foi apresentado pela oposição, na época, como um
teleguiado do Planalto. No ponto mais preciso de seu depoimento, há sete meses,
deu uma pequena aula erudita aos presentes, demonstrando que o traço
fundamental de um magistrado deve ser a imparcialidade e o esforço para
interpretar o que diz a lei, em vez da postura ativista de quem se considera no
direito de reinterpretá-la aos sabores do momento, atitude que marca o chamado
ativismo judicial. Facchin também fez uma referência oportuna a Norberto
Bobbio, pensador italiano que foi um dos baluartes filosóficos do garantismo,
corrente jurídica que, como o próprio nome indica, prioriza a defesa dos
direitos e garantias fundamentais em contraposição uma postura punitivista que
tem acompanhado a opção de vários magistrados pelo mundo inteiro, e que tem a
postura recente da Justiça dentro e fora do país, inclusive em episódios como a
AP 470 e a Operação Lava Jato.
Ao interferir de
modo liminar, transferindo a decisão para o plenário do STF, que se reúne na
próxima quarta-feira, 16 de dezembro, Fachin impediu que a manobra de Cunha e
da oposição seguisse seu curso. Lembrando que é prudente "evitar a prática
de atos que poderão ser invalidados pelo Supremo Tribunal Federal, " tomou
uma providência importante. Impediu que a Comissão criada horas antes,
com a função de produzir um relatório destinado a inocentar ou condenar Dilma
Rousseff -- a partir de um jogo de cartas marcadas -- que deveria ser
votado mais tarde pelo plenário, sequer pudesse ser instalada para começar a
funcionar.
Como essa
comissão tinha uma maioria artificial de 39 votos favoráveis ao impeachment,
contra 26 vagas reservadas aos alinhados com a postura contrária, não era
difícil prever o que iria acontecer, numa típica disputa arranjada, sem relação
real com o peso de cada partido no Congresso, produto da decisão soberana do
eleitor em outubro de 2014. Numa dessas manobras de plenário de causar inveja a
qualquer assembléia estudantil incapaz de resolver suas diferenças
democraticamente, Cunha fez aprovar o ritual suspenso por Fachin numa sucessão
de atropelos ao regimento e aos direitos dos parlamentares.
Ao contrário do
que seria indispensável numa decisão política dessa envergadura, onde está em
jogo o mandato de uma presidente eleita por mais de 54 milhões de votos, o
projeto do presidente da Câmara era uma opção de caráter faccioso. Destinava-se
a dividir o plenário entre aliados e adversários -- em vez de permitir
consensos e diferenças num ambiente com um indispensável grau mínimo de
civilidade. Como era de se imaginar, em seus piores momentos o debate na Câmara
teve cenas dignas de brigas ruas rua -- e não poderia ser diferente.
Em primeiro
lugar, ignorou uma proposta de Comissão que se definia pelo colégio de líderes
da Câmara, tradicional mecanismo de decisão na Casa, que pretendia criar um
ambiente equilibrado, com um ou dos votos a favor de uma ou de outra parte, em
vez uma diferença de 13 vagas.
Cunha ainda impediu que sua proposta fosse
discutida antes de ser encaminhada, recusando-se até a aceitar as clássicas
questões de ordem que permitem debate no plenário. Com urnas instaladas no
plenário, decidiu por conta própria que o voto deveria ser secreto --
iniciativa que, naquela circunstância, favorecia a traição de parlamentares
instalados em empregos e verbas do governo, muito conveniente num momento de
adultério aberto de Michel Temer e seus aliados. Por fim, deu início a votação
sem respeitar demais manifestações em conrário. Indignados diante da
truculência, parlamentares adversários sabotaram a iniciativa como era
possível. Instalados nas cabines de votação, perdiam um tempo exagerado para digitar
sua opção entre duas propostas cuja preferência era óbvia. Essa lentidão gerou
filas, que geraram confusão e, como era de se imaginar, muitas urnas acabaram
quebradas. Das 14 colocadas no plenário, apenas duas funcionavam até o final.
A matemática do
resultado final, quando os aliados de Cunha tiveram 272 votos, contra 199 para
os adversários do impeachment, obriga várias interpretações políticas. A
primeira é que a oposição tem maioria do plenário da Câmara -- e isso irá lhe
permitir, cedo ou tarde, impor interesses e preferências. Não se trata, porém,
de uma vantagem arrasadora. Com 37 votos a mais -- coisa que, num serviço
competente, uma bancada com apoio do governo tem possiblidades de obter -- pode
ser possível até inverter o placar.
De qualquer
maneira, a primeira questão importante é impedir que a maioria sufoque a
minoria através de manobras anti-democráticas, como Cunha promoveu várias
vezes, a partir de um rolo compressor empregado para fazer avançar sua agenda
conservadora desde o início do ano, inclusive violando a Constituição. A
segunda observação essencial envolve o impeachment. A votação mostra que, nas
atuais condições de temperatura e pressão, faltam 70 votos para a oposição
reunir o quorum mínimo de dois terços para afastar a presidente. Não é pouca
coisa, quando se considera que o debate já completou um ano e a maioria do
plenário está alinhada e sabe do que se trata.
Um ponto
importante que pode dificultar o crescimento da oposição é que as
denúncias que tem sido levantadas contra Dilma são frágeis, não apontam para
sua participação direta em qualquer denúncia -- mesmo leve -- e muito menos
para um crime de responsabilidade, como exige a Constituição.
Na
segunda-feira, a reunião no Planalto de duas dezenas de juristas que
manifestaram seu repúdio ao pedido de impeachment teve a utilidade de
demonstrar as fraquezas jurídicas da denúncia do ponto de vista técnico. É uma
questão importante, numa hora em que o debate deve chegar ao cidadão comum, que
acabará influenciando os parlamentares que vão decidir a questão.
A falta de
fundamento jurídico demonstra que a tentativa de afastar a presidente não
atende a nenhuma finalidade ética, a nenhum projeto de melhoria do país. Atende
sòmente aos interesses de um bloco político inconformado com a própria derrota
nas urnas e que 72 horas depois de reconhecer a vitória de Dilma já se
mobilizava para tentar virar o resultado no tapetão. Neste aspecto, o debate
jurídico pode ser esclarecedor. Lembra que o afastamento de um chefe de Estado
comprovadamente envolvido com práticas de corrupção pode ser um ótimo remédio
para a democracia. Já o impeachment de uma autoridade contra a qual não há um
fiapo de prova é, em si, uma forma de corrupção do regime democrático. Atropela
a vontade soberana do povo a partir de mentiras, provas fabricas e manobras em
vários planos políticos.
A principal
reflexão sobre a dramática jornada de ontem, contudo, envolve o destino do
presidente do Congresso, Eduardo Cunha.
Como se não
bastassem as escandalosas provas reunidas contra ele, o que já seria o caso de
afastamento como qualquer outro parlamentar em tempos atuais, a intervenção de
ontem confirmou que há um agravante.
Sem qualquer
escrúpulo para salvar um mandato de qualquer maneira, Cunha passou a mobilizar
um dos três poderes da Republica. Utiliza todos os instrumentos disponíveis
para perseguir uma presidente, contra a qual não sequer nenhuma alegação
plausível de envolvimento em práticas condenáveis, numa atuação que gera
tumulto e incerteza, no interior de uma conjuntura política que não é para
amadores. Em movimentos coordenados com aliados, conseguiu impedir que o
Conselho de Ética avançasse na deliberação de seu caso, enquanto armava o golpe
do impeachment no plenário. No mesmo dia, na mesma hora, em movimentos típicos
de quem comanda uma organização política própria.
Essa é a questão
maior de ontem. Considerando que o banqueiro André Esteves está às voltas com
os ratos do Complexo de Bangu, e que o senador Delcídio do Amaral -- preso no
exercício do mandato, o que contraria a Constituição --- é o caso de perguntar:
qual o privilégio que garante a liberdade de movimentos de Eduardo Cunha.
Será que as
delações premiadas não foram suficientes? Falta alguma coisa na investigação
sobre maquinações para arrancar propinas de empresas com interesse no governo?
O ministério publico da Suíça precisa mandar alguma coisa?
É isso, meus
amigos. Ou Eduardo Cunha é afastado, ou vai permanecer em seu posto, 24 horas
por dia, conspirando para afastar uma presidente inocente.
É tão difícil
perceber quem ganha com isso? Alguma dúvida?
Ontem, numa
intervenção depois das dez da noite, Edson Fachin interrompeu uma
manobra. É uma medida acertada, com validade definida -- até a plenária do STF.
A grande pergunta é saber qual será a próxima manobra de Cunha -- e até quando
a democracia poderá proteger-se delas.
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Marcos Imperial