Por Paulo Nogueira do 247.
A confissão de Rose de Freitas de que as
pedaladas fiscais não passaram de um pretexto para afastar Dilma Rousseff e
empossar o governo provisório de seu patrão Michel Temer ajudou a reforçar a
certeza de que o país está diante de um golpe parlamentar e comoveu vozes que
até agora nada enxergavam de errado. "Há golpe", reagiu o colunista
Elio Gaspari.
Até agora, contudo, não há sinais de que
uma notícia dessa importância tenha sido capaz de alterar o placar de votos do
Senado que, lá pelo meio de agosto, irá resolver o destino de Dilma e, no mesma
votação, definir a solidez das instituições democráticas erguidas pela
Constituição de 1988. Essa conjuntura particular obriga reconhecer que o risco
de a democracia brasileira -- que
serviu a mais de 100 milhões de eleitores em outubro de 2014 -- ser conduzida como uma boiada para o
matadouro, é muito maior do que se gostaria de imaginar.
O estudo técnico da denúncia que pode tirar
Dilma de seu cargo mostra, na verdade, um dado ainda mais preocupante. Mesmo
que Rose de Freitas tivesse ficado de boca fechada, e jamais tivesse dito em
voz alta aquilo que seus pares reconhecem em voz baixa, bastaria um exame
cuidadoso da acusação encaminhada ao Senado para se reconhecer o absurdo
essencial. Não há a denuncia de uma fraude. Mas uma fraude transformada em
denúncia, como você pode verificar mais adiante, através do gráfico publicado
nesta reportagem, baseado em números oficiais do Tesouro.
Quem denuncia crimes de natureza fiscal e
pretende, com eles, conseguir a proeza de arrancar uma presidente eleita de seu
cargo, atalho jamais experimentado em regimes democráticos que merecem ser
imitados, deveria reconhecer que neste caso é preciso cumprir a obrigação de oferecer números
sólidos, indesmentíveis, para servir como prova -- devidamente acompanhados de
indícios contra a presidente. Para motivar um debate sério, os dados
precisariam, no mínimo, ter a clareza das contas suíças de Eduardo Cunha. Ou a
força indesmentível das palavras gravadas de Romero Jucá e outros aliados de
Michel Temer. Quem sabe o peso dos 470 quilos de cocaína do helicóptero do
senador amigo de Aécio, cujo filho acaba de assumir uma secretaria no
ministério de Esportes. Não é nada disso, como será possível demonstrar
aqui.
Conforme se pode ler na nota técnica número 109/2016, preparada pela
Consultoria de Orçamento, Fiscalização e Controle do Senado, uma análise dos
gastos discricionários de 2015, base para o pedido de impeachment, mostra uma situação fácil de entender. A
visão vulgar sobre o governo Dilma em 2015 diz que ele promoveu promoveu gastos descontrolados em 2015, que
produziam déficit, geravam inflação e prejudicavam a economia em nome de um
projeto bolivariano de poder. Os números reais
mostram outra realidade. Reduzem a "gastança" a uma mitologia
vergonhosa e politicamente interesseira. Confirmam que, em vez de gastar cada
vez mais, como programa de estímulos, que talvez fosse o melhor caminho para a
retomada do crescimento, na visão de vários economistas de pensamento
keynesiano, o Planalto de Dilma passou 2015 tomando medidas em série para
gastar cada vez menos. Isso aconteceu porque, entre 2014, quando se fez a
elaboração do orçamento, e 2015, quando
a teoria saiu do papel para entrar na vida prática, o mundo havia ficado de
ponta cabeça. Em vez de projeções que previam um crescimento de até 2%, visão
partilhada inclusive pelo levantamento Focus do Banco Central, o país mergulhou
no segundo ano consecutivo de recessão, porta de entrada para a pior crise econômica
em décadas.
A denuncia envolve um orçamento elaborado num
momento em que era possível enxergar as planilhas de um país em direção ao
crescimento -- mas realizado quando o mesmo governo executava um ajuste para
baixo. Um observador honesto poderia apontar para uma falha clamorosa na
bússola econômica da equipe de Dilma. Mas jamais teria o direito de apontar
desvios de caráter criminoso, muito menos irresponsável do ponto de vista
fiscal. O discurso pode ser útil para o palanque de quem quer aprovar um
impeachment de qualquer maneira, especialmente com falsidades e demagogia. Mas
é falso, incoerente, após um exame de lógica elementar. Se há alguma observação
a fazer, é que se adotou um comportamento zeloso -- quem sabe até demais.
A tabela mostra que o total inicialmente
autorizado pelo Congresso para gastos discricionários -- aqueles que podem ser
alterados pela presidência da República --
para o ano de 2015, chegava a R$ 200,5 bilhões. Reforçada por sucessivas
dotações autorizadas, a soma final subiu para R$ 211,7 bilhões. Na hora de
gastar os recursos, no entanto, o
governo já havia assumido que 2015 seria um ano de ajustes e cortes e agiu na
direção inversa. Entre a verba autorizada e a empenhada, aquele montante que é
encaminhado para pagamento real, ocorreu uma redução de 65,6%, para R$ 138,9
bilhões. Foi só o primeiro corte.
Em função daquele fenômeno conhecido por toda pessoa familiarizada com
os ritos burocráticos e acidentes de percurso no caminho percorrido das verbas
oficiais que deixam o cofre para encontrar a luz do dia, os cortes não ficaram
aí. Nem tudo o que fora empenhado (R$
138,9 bi) acabou sendo efetivamente gasto (R$ 88,8 bi). Neste caso, a diferença
foi de R$ 50,1 bilhões -- para menos.
Comparando a dotação inicial autorizada
pelo Congresso, com o gasto real até o final de 2015, chega-se a uma diferença
de RS 112 bilhões -- para baixo. Enfrentando uma dramática queda de receitas ao
longo do ano, em dezembro o governo propôs e o Congresso aprovou um
contingenciamento de R$ 69,9 bilhões, o maior da história.
Como diz a nota técnica, "é
cristalino que todos os créditos adicionais abertos, inclusive por decreto, não
tiveram qualquer efeito no atingimento da meta." Isso quer dizer o
seguinte. Se três entre os quatro decretos suplementares autorizaram novas
despesas -- o quarto já foi descartado porque não representou gasto algum
-- elas foram compensados, por recursos
que foram economizados, em outras áreas, e por isso não afetaram o gasto final.
Num Estado que funciona com regras muito
mais rígidas e limites muito mais estreitos do que se costuma imaginar, boa
parte dos decretos destinam-se apenas a autorizar setores da administração
pública que tiveram um ganho extra de receita -- e precisam de um "crédito"
para poder gastar o que receberam. Estamos falando de universidades federais
que receberam donativos, instituições que engordaram o caixa com a aceitação
acima do previsto de serviços vendidos e assim por diante.
Como era previsível, o exame de cada um dos
decretos legislativos mostra a mesma situação, num conjunto que coloca em
questão a tese política de um governo que seria irresponsável com dinheiro
público, num discurso que todos sabemos aonde pretende chegar. O Plano Safra, que chegou a ser o carro forte
da denúncia contra a Dilma, foi retirado de cena, pois não há meios de ligar
qualquer um de seus desdobramentos a caneta presidencial. As pedaladas foram
arquivadas. Dos quatro decretos suplementares, entre centenas que a presidente
assinou no período, ficaram três. Eram quatro, mas um deles não chegou a
representar um centavo de gasto. Capazes de apontar a responsabilidade de Dilma
pelos decretos -- numa versão mal empregada da teoria do domínio do fato -- os
peritos chamados a dar um parecer sobre as contas do governo não foram capazes
de definir qual a natureza da irregularidade cometida nem responder a questão
principal. Se houve crime fiscal, qual o prejuízo que causou?
Apoiada nestes números, que contrariam frontalmente a denúncia contra a
presidente, a senadora Vanessa Grazziotin (PC do B-AM) fez a pergunta da semana
na Comissão Especial sobre o Impeachment. "A perícia tem que responder:
quando foi que se feriu a meta? Quando a presidenta não tinha autorização legal
para fazer o que fez? É isso o que está acontecendo: o Brasil passa por seu
pior momento, pelo mais difícil, mas tem pessoas aqui querendo incriminar,
tirar o mandato de quem foi eleito pelo povo. Isso não é impeachment, é
golpe."
Colocada em seu devido lugar, a confissão da líder do governo merece
elogio pela franqueza. Mas incomoda pelo conformismo de quem acha que é assim
mesmo que as coisas deveriam ocorrer. O silêncio de seus aliados, que nem se
deram ao trabalho de confrontar o que ela disse -- até para manter as aparências
-- mostra que há um esforço silencioso para se transformar um ataque histórico
à democracia num evento aceitável, com o qual seria bom se conformar. A postura
de fingir que não há nada de escandaloso, inaceitável, neste processo, é uma
tentativa de anestesiar consciências e distorcer os fatos.
Aqui reside o perigo. Se a agenda
econômica e social de Michel Temer é uma tragédia, o projeto de regressão
política pode ser ainda mais duradouro e pernicioso.
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Marcos Imperial