Werner Heisenberg, físico teórico alemão que desenvolveu, a partir de suas próprias descobertas, o Princípio da Incerteza. Examiná-lo pode ser essencial para enfrentar, de maneira propositiva, a crise do ensino
De que forma novas concepções filosóficas estão questionando o que imaginávamos sobre “aquisição” de conhecimentos. Como elas podem transformar a Educação e a Universidade
Por Alex Bretas Vasconcelos
Imagine um círculo que contém todo o conhecimento humano:
Quando você completa o ensino básico, você sabe um pouco:
Quando você completa o ensino médio, sabe um pouquinho mais:
Com uma graduação, você sabe um pouco mais e ganha uma especialização:
Um mestrado te aprofunda naquela especialização:
Ler e estudar teses te leva cada vez mais em direção ao limite do conhecimento humano naquela área:
Quando chega lá, você se foca:
Você tenta ultrapassar os limites por alguns anos:
Até que um dia os limites cedem:
Este pequeno calombinho de conhecimento que ultrapassou os limites é chamado de doutorado
(Ph.D.):
É claro que na sua visão de mundo fica diferente:
Mas não esqueça da dimensão das coisas:
Fonte: “The Illustrated Guide to a Ph.D”, de Matt Might.
Esta é a forma que Matt Might, professor da Universidade de Utah, nos Estados Unidos, encontrou para explicar didática e visualmente o que é um doutorado. Inspirado pelo modelo de Matt, também busquei um jeito de comunicar minha visão a respeito do doutorado informal, da qual falarei no próximo post. Antes de apresentá-la, porém, vale destacar quatro questionamentos que tive enquanto lia a explicação de Matt. Vamos a eles:
Só se aprende na escola ou na universidade?
A sequência de gráficos tende a uniformizar os caminhos de aprendizagem, admitindo implicitamente que somente se adquire conhecimento quem segue o trajeto ensino básico — ensino médio — graduação — mestrado — doutorado. Não é porque essa via conteudista ainda seja mais valorizada hoje que outros aprenderes deixem de ter importância.
O caso do mecânico mineiro Alfredo Moser, que inventou as lâmpadas engarrafadas que iluminam a partir da luz do sol, exemplifica quão fundamental é estar atento para as aprendizagens da vida. A partir da necessidade — a invenção foi feita durante os apagões de 2002 –, Alfredo criou uma forma de se obter luz que não depende da energia elétrica e utiliza apenas água, um pouco de cloro e garrafas pet. Hoje, suas lâmpadas bioeficientes já estão instaladas nas casas de centenas de milhares de pessoas ao redor do mundo.
Alfredo Moser e suas lâmpadas de garrafa pet
Somando-se à questão inicial, trago outra pergunta, mais polêmica:
Alguém que fez doutorado tem, necessariamente, mais conhecimentos do que aquela pessoa que não completou o ensino fundamental?
Cada um de nós responderá de acordo com suas crenças e interpretações. Eu acredito que não: isso porque não vejo o conhecimento acadêmico ou científico como superior a nenhuma outra forma de se conhecer. Paul Feyerabend já denunciava o privilégio que a ciência adquiriu historicamente frente a outros campos por um suposto método científico padrão e infalível. Sinceramente, não é porque eu frequentei mais tempo escolas e universidades do que Alfredo Moser que sou mais conhecedor do mundo do que ele — isso é uma daquelas verdades que às vezes aceitamos sem questionar.
Aliás, a própria construção dessa pergunta já encerra uma crença de que é possível quantificar o aprender, isto é, alguém “ter mais” conhecimentos do que outro. Como se fosse uma competição (infelizmente, muitas vezes ainda é). Falaremos disso mais à frente.
Os conhecimentos humanos existem antes que as pessoas interajam com eles?
A explicação de Matt pressupõe que o conhecimento já existe, e o que as pessoas podem fazer é adquiri-lo e acumulá-lo por meio de sucessivas incursões escolares. A visão de mundo por trás desse raciocínio é o realismo — isto é, há uma realidade objetiva (imutável) e cada um de nós abocanha o que consegue por meio de suas ferramentas cognitivas.
Essa visão ainda é bastante cara a vários nichos da comunidade científica, mas já foi discutida e relativizada exaustivamente pela filosofia. No campo das ciências, alguns físicos quânticos e biólogos (para citar alguns, dentre psicólogos, cientistas sociais e vários outros) começaram a cutucar essa ideia porque suas pesquisas apontavam para evidências incongruentes com o paradigma da qual ela se origina. O princípio da incerteza de Heisenberg, na primeira metade do século XX, e mais recentemente a Biologia do Conhecer de Humberto Maturana são exemplos de achados científicos que sedimentaram o caminho para que alguns cientistas começassem a questionar o materialismo. Em seu lugar, vem à tona a intersubjetividade.
Desta forma, os conhecimentos humanos — tecnologias, métodos, saberes, teorias, invenções e tantos outros — passam a existir porque nós nos relacionamos com eles. Mais precisamente, nós os cocriamos continuamente por meio da linguagem. Interagimos com o mundo, com os outros e conosco e a nossa realidade vai surgindo assim, de uma forma diferente para cada pessoa e para cada ser vivo.
É por isso que pressupor uma grande soma de conhecimentos a priori, acessível de modo igual a todos que frequentam determinadas instituições é inconsistente com uma visão de realidade intersubjetiva. Meu aprender vai sendo sempre diferente e único, não dá pra achar que é indústria.
Apenas os doutores podem somar novos conhecimentos à humanidade?
Vejamos: só quem chega no “topo” da escalada do conhecimento humano pode agregar novos desdobramentos a ele. Não coincidentemente, esses alguéns são os doutores.
Já vimos porque não se aprende somente na escola ou na universidade e porque não faz sentido, segundo uma visão mais relativizada de mundo, pressupor que os conhecimentos estão dados e existem a despeito de um sujeito que se relaciona com eles. Agora, para responder a esse novo questionamento, gostaria de propor algumas reflexões.
Se a construção do conhecimento não é objetiva e o aprender é com a vida, então todos nós, sujeitos plenamente capazes de interagir com o mundo (cada um à sua maneira) podemos sim fazer descobertas, criar inovações e sustentar novas perspectivas. Pessoas fazem isso o tempo todo e os aprendizados que elas fazem florescer são decisivos para diversas comunidades ao redor do globo, não apenas para a comunidade científica. O exemplo que citei de Alfredo Moser e sua invenção da luz engarrafada ilustra perfeitamente isso.
Cada vez mais, acredito que a humanidade se interessará e precisará de inovações que surjam da cocriação, que atravessem as relações hierárquicas das instituições acadêmicas e escolares e que bebam da aprendizagem intersubjetiva de cada um.
Por outro lado, você poderia me dizer que a sequência de imagens de Matt está se referindo apenas ao campo científico, pelo fato do objeto em questão ser o doutorado acadêmico. Isso invalidaria, de certa forma, o que eu acabei de argumentar. Ainda que, especificamente no domínio da ciência, a regra do doutor como proponente oficial da inovação possa valer, penso que também a comunidade científica poderia ser muito beneficiada caso isso fosse revisto.
Estudantes de graduação e mestrado – e não raro também os doutorandos — passam anos acreditando não poder criar coisas novas. Como seria a universidade se, desde o primeiro momento de cada estudante, o ambiente estimulasse radicalmente a descoberta e a inovação? Certamente haveria mais erros, e isso seria ótimo, inclusive para o progresso da ciência.
Todos nós “adquirimos” conhecimento da mesma forma?
Suponha que a sequência explicativa de Matt represente a minha própria trajetória educacional. Uma outra pessoa, ainda que tenha passado pelas mesmas instituições de ensino que eu, teria seu “gráfico de conhecimentos” muito diferente do meu. Na verdade, isso aconteceria mesmo se fôssemos gêmeos idênticos, porque a maneira com que cada um de nós percebe, conhece e se relaciona com o mundo é singular. Pressupor que pessoas diferentes têm o mesmo “nível” de conhecimento ao terminarem o ensino médio, por exemplo, é querer quantificar o que é eminentemente qualitativo e, além disso, desconsiderar as relações distintas que cada um estabelece com os conteúdos e com a vida. A rigidez e a uniformidade que boa parte das escolas e universidades nos impõe tenta nos fazer acreditar que nossas aprendizagens deveriam ser as mesmas… Mesmo assim, no fundo sabemos que não funcionamos assim.
A própria ideia que criamos, de “aquisição” de conhecimentos, como se fossem produtos industrializados que pegamos na prateleira do supermercado, é uma imagem que deriva de uma compreensão estática e objetiva da realidade. O conhecimento não está lá para pegarmos, ele é construído biológica e culturalmente por nós, numa lógica muito mais “toque do chef” do que comida manufaturada. Somos como grandes chefs de cozinha que conseguem transformar simples ingredientes em pratos saborosos e incomparáveis: ao interagirmos com a realidade, produzimos percepções únicas sobre o que distinguimos, isto é, conhecimento.
Pode parecer que eu não gostei do modelo que Matt criou, mas isso não é verdade. A parte final da narrativa é especialmente interessante, pois propõe aos doutores “descerem do salto” e perceberem o tamanho do conteúdo das suas teses em relação a todo o conhecimento existente no mundo. Além disso, partindo de uma proposta calcada no diálogo, não me cabe desqualificar um ponto de vista, tampouco achar que a minha visão é melhor. Mas, cabe sim eu poder expressá-la.
Em suma: a sequência de figuras diz o que é um doutorado, mas é importante dizer segundo quem. Minha visão de mundo vai mais na linha “toque do chef”.
Outras Palavras. https://educezimbra.wordpress.com/2017/08/21/muito-alem-do-saber-cartesiano/
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Marcos Imperial