Em dois anos, a extrema pobreza dobrou no estado, um retrocesso de duas décadas. Já a violência é a mesma de outros carnavais.
Com mais de 2,5 milhões de visualizações em cinco dias, um vídeo oferece dicas de sobrevivência para os moradores de favelas do Rio de Janeiro, sobretudo os negros, em tempos de intervenção federal, com as Forças Armadas no comando de todas as operações de segurança pública.
Nas imagens, com duração de pouco mais de três minutos, os youtubers Edu Carvalho, Spartakus Santiago e AD Junior ensinam como se portar diante de uma blitz e fazem uma série de recomendações. Evitar atividades de madrugada, não sair de casa sem documento de identificação, se possível levar também a carteira de trabalho e notas fiscais de eletrônicos que carregar na bolsa, como smartphones ou câmeras fotográficas.
Um ponto é reforçado: andar sempre com o celular e a bateria carregada. “É com ele que você consegue fazer não apenas as ligações, mas as gravações (de abordagens abusivas), além de compartilhar com seus amigos e familiares a sua localização”, enfatiza Carvalho.
Os jovens têm motivos para se preocupar, ao considerar o longo histórico de violações aos direitos humanos nas operações militares nos morros fluminenses. Em novembro de 2017, para citar um exemplo, uma operação conjunta do Exército com o Core, unidade de elite da Polícia Civil, acabou com sete corpos espalhados por uma estrada do Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo, na Região Metropolitana do Rio.
Ao todo, 11 civis foram baleados. Semanas depois, morreria a oitava vítima. Passados três meses de investigações, os autores da chacina ainda não foram identificados. Os policiais apontam o dedo para os militares, e vice-versa. Ninguém assume a responsabilidade.
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Na manhã da terça-feira 20, as Forças Armadas promoveram uma das primeiras incursões pós-intervenção na favela Kelson’s, localizada às margens da Baía de Guanabara e vizinha do Centro de Instrução Almirante Alexandrino, da Marinha. “Queremos mandar um recado para a criminalidade e mostrar que estamos presentes”, disse o coronel Roberto Itamar, porta-voz do Comando Militar do Leste.
Não é possível saber se a operação intimidou a bandidagem, mas não há dúvidas de que os alunos de uma escola da prefeitura tremeram de medo. Naquela manhã, com fuzis a tiracolo, militares inspecionaram as mochilas de crianças diante de um fotógrafo da Associated Press. A cena correu o mundo e deixou a mídia estrangeira boquiaberta.
A desconfiança dos moradores de comunidades pobres é alimentada ainda pelas espantosas declarações de integrantes da cúpula das Forças Armadas. Na segunda-feira 19, durante a reunião do Conselho da República, o comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas, disse ser preciso dar aos militares “a garantia para agir sem o risco de surgir uma nova Comissão da Verdade”. Ao que parece, o oficial parece confundir a punição de torturadores com o uso legítimo da força em situações de confronto.
Ex-comandante das tropas da ONU no Haiti, o general da reserva Augusto Heleno Ribeiro Pereira, por sua vez, saiu em defesa de uma mudança na chamada “regra de engajamento”, uma espécie de manual das situações em que os soldados podem ou não usar a força contra civis. Com isso, emendou, os militares no Rio teriam “o poder de ferir e chegar ao ferimento letal daquele sujeito que tivesse ato ou intenção hostil”.
- Os moradores exigem a punição dos responsáveis pela chacina do Salgueiro (Guilherme Pinto/Ag. O Globo)
Em nota conjunta, a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão e a Câmara Criminal do Ministério Público Federal manifestaram preocupação com a possibilidade de as forças de segurança no Rio solicitarem mandados de busca e apreensão coletivos, sem especificação dos destinatários.
“Mandados em branco, conferindo salvo-conduto para prender, apreender e ingressar em domicílios, atentam contra inúmeras garantias individuais, tais como a proibição de violação da intimidade, do domicílio, bem como do dever de fundamentação das decisões judiciais”, diz o texto, subscrito por quatro procuradores. Eles criticaram ainda as declarações de autoridades civis e militares que “defendem a violação de direitos humanos” por parte do interventor e das Forças Armadas, “ou pelo menos a impunidade para eventuais abusos”.
Os cariocas acostumaram-se com a presença dos militares nas ruas da capital. Em 1992, o então presidente Fernando Collor de Melo enviou 17 mil soldados para reforçar a segurança da conferência da ONU sobre meio ambiente, a Rio-92. Desde então, as missões de Garantia da Lei e da Ordem (conhecidas pela sigla GLO), regulamentadas por uma lei de 1999 e por um decreto de 2001, multiplicaram-se na “Cidade Maravilhosa” e em outros municípios da Região Metropolitana.
Nos últimos dez anos, houve ao menos 13 operações das Forças Armadas no estado do Rio. A intervenção decretada por Temer abre, porém, um inédito capítulo na história das tentativas de estancar a violência local. Apesar do uso das tropas em outras ocasiões, é a primeira vez, desde o fim da ditadura, que o Planalto interfere diretamente no governo estadual, avocando para si a competência de gerir a segurança pública com um interventor.
O que justifica a intervenção no Rio?
Ao anunciar a intervenção, em rede nacional de rádio e televisão, Michel Temer levou o cinismo a outro patamar. Denunciado por organização criminosa pela Procuradoria-Geral da República, além das imputações por corrupção e obstrução da Justiça, disse que o crime organizado “quase tomou conta” do estado.
“É uma metástase que se espalha pelo País e ameaça a tranquilidade de nosso povo”, afirmou. “Estamos vendo bairros inteiros sitiados, escolas sob a mira de fuzis, avenidas transformadas em trincheiras.” Embora a descrição se encaixe bem à realidade fluminense, é incompreensível o súbito espanto do presidente ilegítimo. O que mudou na paisagem do Rio para ele tomar uma decisão tão drástica? Nada, respondem as estatísticas.
“Não houve nenhuma explosão de violência no Rio durante o Carnaval”, tratou de esclarecer Joana Monteiro, presidente do Instituto de Segurança Pública, órgão responsável pela divulgação de dados oficiais. Entre 9 e 14 de fevereiro deste ano, foram registradas 5.865 ocorrências policiais no estado, número 35% inferior àquele dos festejos de 2016, quando foram computados 9.016 delitos entre a sexta-feira e a Quarta-Feira de Cinzas. No Carnaval de 2018, foram notificados 86 homicídios dolosos, número bem inferior ao dos anos anteriores: 94 assassinatos em 2017 e 101 em 2016.
Hoje com cerca de 60 mil assassinatos por ano, o Brasil registrou mais mortes violentas de 2011 a 2015 do que a Síria em guerra nesse mesmo período, atesta o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Uma tragédia sem precedentes no mundo civilizado, mas não restrita ao Rio de Janeiro.
A análise das séries históricas de crimes contra a vida tampouco permite falar em situação excepcional. Embora o índice de “letalidade violenta” (categoria que abrange as ocorrências de homicídio doloso, mortes decorrentes de intervenção policial, latrocínio e lesão corporal seguida de morte) esteja em ascensão desde 2015, ele é o mesmo do fim dos anos 2000, tanto no estado quanto na capital. A taxa de 32,5 mortes violentas por 100 mil habitantes na cidade do Rio é menos da metade da registrada em meados da década de 1990. No estado, o cenário é muito parecido.
Além disso, o Rio de Janeiro é o décimo estado com maior taxa de mortes violentas do País, como atesta o ranking do Fórum Brasileiro, com dados de 2016. Ou seja, outros nove estados possuem índices mais elevados de crimes contra a vida, a exemplo de Sergipe, Rio Grande do Norte e Alagoas, líderes incontestes da listagem.
Qual é o sentido de o Planalto intervir no Rio se outras unidades da Federação estão em situação ainda mais dramática? Em meio a uma guerra de facções criminosas, o Ceará vive momento delicado e recebeu de Temer o apoio de uma diminuta força-tarefa, integrada por 26 agentes da Polícia Federal e 10 integrantes da Força Nacional de Segurança Pública. Por que uma solução tão diferente?
Curiosamente, o próprio interventor do Rio, general Walter Braga Netto, reconheceu o exagero na percepção da violência no Rio. “É grave, mas não está fora de controle”, disse na sexta 16, durante uma entrevista no Palácio do Planalto. O oficial lamentou ainda haver “muita mídia” em cima do assunto. Cinco dias após o anúncio da intervenção, o Comando Militar do Leste informou que o grupo de trabalho para assessorá-lo ainda estava em formação, e mencionou reuniões para fazer “um diagnóstico da segurança pública”.
A despeito da infeliz declaração sobre a Comissão da Verdade, o general Eduardo Villas Bôas ainda é uma das vozes mais moderadas nos círculos militares. Ex-presidente da Associação Brasileira de Estudos de Defesa e professor de Relações Internacionais da Unesp, Alexandre Fuccille observa uma disputa no interior das Forças Armadas em relação à conduta a ser assumida.
“Há ao menos duas vertentes do Exército”, explica. Uma é justamente aquela de Villas Bôas, que acha temerária a banalização do emprego das tropas em atividades de segurança pública. A outra vertente é encabeçada pelo ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, Sergio Etchegoyen, que não vê problema algum e costuma repetir que “missão dada é missão cumprida”.
“Do ponto de vista político, Etche-goyen é muito mais próximo de Temer, até porque foi nomeado por ele na recriação do gabinete, extinto pela ex-presidente Dilma Rousseff”, diz Fuccille. “Já Villas Bôas foi nomeado por Dilma. Parece-me muito mais prudente a posição do comandante do Exército, que sairá em março, e então entrará alguém mais alinhado com o atual governo, o que vejo com muita preocupação.”
Na divisão dos recursos, as ações bélicas têm prioridade
Apesar do uso recorrente das tropas em atividades de policiamento, essas operações não geraram resultados significativos, até por seu caráter de improvisação, avalia a pesquisadora Jacqueline Muniz, professora do Departamento de Segurança Pública da Universidade Federal Fluminense. “De Fernando Henrique Cardoso para cá, todos os presidentes fizeram uso das Forças Armadas como uma espécie de gambiarra”, diz.
“No caso da Maré, gastaram-se ao menos 350 milhões de reais durante um ano (441 milhões de reais, segundo a resposta do Ministério da Defesa a um pedido feito no portal da Lei de Acesso à Informação), e o que se produziu foram desgastes e riscos.” Detalhe estarrecedor: em seis anos, de 2009 a 2015, os investimentos em programas sociais da prefeitura na comunidade somaram 303,6 milhões de reais, muito abaixo do valor despendido em um ano de ações bélicas.
Os moradores da comunidade reprovaram os militares. Segundo uma pesquisa feita pela ONG Redes da Maré, em parceria com o People’s Palace Projects da Universidade Queen Mary (Reino Unido), 69,2% dos mil entrevistados disseram que a sensação de segurança não aumentou, e 22% presenciaram confrontos violentos. “Na comunidade, o Estado sempre negligenciou o direito à vida, à moradia digna, à educação de qualidade. Só ofereceu o seu braço armado, como se tanques de guerra fossem resolver os nossos problemas”, lamenta a jornalista Gizele Martins, nascida e criada na Maré.
- A guerra na Maré custou mais do que seis anos de investimento social (Ricardo Moraes/Reuters)
Uma das cenas que mais marcaram Gizele foi a passagem dos blindados do Exército pelas apertadas ruas e vielas da comunidade, destruindo o frágil asfaltamento e os canos expostos das residências, erguidas na base do improviso. “No auge da ocupação, chegamos a ter um soldado para cada 55 moradores, mas nunca tivemos um professor, um médico, um enfermeiro nessa mesma proporção. Percebe o absurdo?”
No lançamento da última fase de montagem do submarino Riachuelo, ao lado de Temer e do ministro Raul Jungmann, o governador Luiz Fernando Pezão foi o único a lembrar a dimensão social da tragédia. “Precisamos muito de segurança, mas precisamos de emprego. Só ganhamos a guerra da segurança pública com carteira de trabalho assinada.”
A dimensão social da tragédia
A regressão social é mais do que evidente. No Rio, a extrema pobreza dobrou em apenas dois anos, retrocedendo ao mesmo patamar de duas décadas atrás, revelam dados preliminares de um estudo conduzido pelo demógrafo Paulo Jannuzzi, professor da Escola Nacional de Ciências Estatísticas do IBGE, por Marcelo Vieira, professor-associado da PUC Rio, e pela consultora Daniela Gomes. A miséria atingia 1,3% da população fluminense em 2014, e passou a afetar 2,9% em 2016, um total de 480 mil desvalidos.
Para definir quem é extremamente pobre, os pesquisadores utilizam os parâmetros de público-alvo definidos pelo Plano Brasil Sem Miséria (renda mensal inferior a 70 reais em 2011, o equivalente a 1,25 dólar por dia, o mesmo critério usado à época pelo Banco Mundial). Os indicadores foram compilados com base em estatísticas da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios do IBGE.
O porcentual de cidadãos na pobreza (a viver com até 140 reais mensais, 2,50 dólares por dia) também aumentou significativamente, atingindo 5,5% da população em 2016, o maior índice em oito anos. Na verdade, a regressão social pôde ser constatada em todo o País, mas a miséria avançou no Rio de forma muito mais intensa.
“De um modo geral, o aumento dos índices de pobreza no Brasil tem relação com a elevada taxa de desocupação, com a extinção de postos de emprego formal, com a desestruturação do mercado de trabalho”, afirma Jannuzzi. “O fim das obras da Copa e das Olimpíadas e a crise no setor petrolífero deixaram o povo fluminense mais fragilizado.”
No terceiro trimestre do ano passado, 14,5% da população do Rio com mais de 14 anos de idade estava desempregada, enquanto a taxa de desocupação no País era de 12,4%, segundo a Pnad Contínua do IBGE. Tradicionalmente, o desemprego acomete, sobretudo, a parcela mais vulnerável da sociedade. Dos brasileiros que procuram trabalho há mais de um ano, 95% pertencem às classes C, D e E, indica uma recente pesquisa encomendada pelo Serviço de Proteção ao Crédito e pela Confederação Nacional de Dirigentes Lojistas. Em média, o trabalhador leva 14 meses para arrumar uma nova ocupação.
No Rio, quando se analisa o grupo dos 20% mais pobres, mais de um terço da população economicamente ativa estava desempregada em 2016, indicam os dados compilados por Jannuzzi e sua equipe. Para agravar o cenário, o estudo demonstra a desarticulação da rede de proteção social fluminense. A quantidade de profissionais lotados nas unidades que ofertam serviços socioassistenciais no estado está em declínio nos últimos anos. O número de beneficiários do Bolsa Família está igualmente em queda, de 852,2 mil, em 2014, para 804,6 mil em 2017, um recuo de 5,6% no período.
De 2003 a 2014, o Brasil retirou mais de 29 milhões de cidadãos da pobreza, atesta o Banco Mundial. “Essa conquista só foi possível graças à forte geração de empregos no período, à formalização do mercado de trabalho, à valorização do salário mínimo, à ampliação da cobertura da Previdência rural e às políticas assistenciais, como o Bolsa Família e o Benefício por Prestação Continuada”, resume a economista Tereza Campello, ex-ministra do Desenvolvimento Social.
“Hoje, todos esses elementos estão sendo destruídos pelo governo, com a política econômica recessiva, a supressão de direitos trabalhistas, a falta de reajustes no salário mínimo e nos benefícios assistenciais.”
No caso do Rio, emenda Campello, o cenário é mais grave devido à crise no setor de petróleo, que derrubou as receitas do estado e contribuiu para elevar o desemprego acima da média nacional. Após os carros alegóricos das escolas de samba, desfilam os tanques, mas a realidade continua a mesma. Via https://www.cartacapital.com.br/sociedade/no-rio-de-janeiro-o-maior-impasse-e-a-violencia-ou-a-regressao-social